(Cândido Rolim)
Se não fôssemos escritores, Cândido Rolim e eu nunca teríamos nos conhecido. A não ser por acaso. Ou se nos tornássemos protagonistas de episódios de repercussão internacional, como o assalto ao trem pagador, o crime da Rua Morgue ou o grande desastre aéreo de ontem. Nos jornais, diriam repórteres alarmados e alarmantes: “Morreram, também, o maestro Cândido Rolim e o ator Nilto Maciel. Mergulhadores encontraram, a boiar nas águas...”. Jorge de Lima, o mais singular dos poetas brasileiros, escreveria: “Vejo sangue no ar, vejo o piloto que levava uma flor para a noiva, abraçado com a hélice. E o violinista em que a morte acentuou a palidez, despenhar-se com sua cabeleira negra e seu estradivárius”. Porém, nada disseram, nada dizem, nada dirão, pois somos apenas poetas, como outros, no imenso palco do mundo.
Não pude conhecer Cândido nos momentos iniciais de sua trajetória poética, pois, quando chegou a Fortaleza, em 78, eu já me encontrava em Brasília. O Saco não existia mais e talvez houvesse marasmo na vida literária da capital cearense. Eis por que o jovem egresso de Várzea Alegre encontrou arrimo em dois poetas sexagenários: Germano Pontes e Caetano Ximenes Aragão. O que certamente o ajudou a amadurecer mais cedo. Entretanto, necessitava da companhia de poetas de sua idade e queria publicar os primeiros poemas. E assim se deu, a partir de 82, nas revistas Ceia Literária e Nação Cariri, bem como nos cadernos de cultura dos jornais O Povo, Diário do Nordeste e Estado de Minas. Não acompanhei esta sua fase. Nem sequer tive conhecimento de sua primeira coleção de poemas, Rios de Mim (Fortaleza: Secretaria de Cultura do Estado do Ceará, 1982). Só soube dele mais tarde, quando se encontrava em Belo Horizonte, para onde se mudara em 84, e se editou seu segundo volume de versos, Arauto (Sabará: Edições Dubolso, 1988). Enviou para mim um exemplar.
Os anos se passavam e ele terminou se mudando para mais longe do Ceará: foi bater em Porto Alegre, como se fugido da seca, da polícia ou de alguma mulher. Seu único amigo no Norte talvez fosse Jorge Pieiro, irmão de ideário artístico. O que se demonstra no selo (de Jorge) do terceiro livro: Exemplos Alados (Fortaleza: Letra & Música, 1997). Ainda no Sul, editou Pedra Habitada (Porto Alegre: AGE, 2002). Nesse ano, voltei a Fortaleza. Com Pedro Salgueiro e Jorge Pieiro, me encontrava quase todo dia (noite). Notícias de Rolim? Pieiro brincava: Anda rolando candidamente pelos pampas. Bebíamos muito e falávamos dos amigos distantes. Notícias de Rolim? No Natal de 2004, Pieiro sorriu e anunciou a novidade: O poeta mais careca do mundo estará entre nós no dia 10 de janeiro. E assim se deu. No dia seguinte, nos encontramos no Dragão do Mar. Não me assustei logo, pois seu rosto aparecia em jornais e livros: calvície avançada, óculos de grau, rosto ossudo, quase chocho. Estávamos sentados, Pieiro e Pedro, a sorver chope. Falávamos da nova literatura brasileira. Fulano mal sabe escrever e, no entanto, é tido como gênio. Súbito, apareceu à nossa frente uma figura quase esquelética, semelhante a um boneco constituído de pedaços de pau, manipulado por mão invisível. Olhei para o alto do prédio, como se buscasse o manipulador dos cordéis que movimentavam a marionete. Como é de praxe nessas ocasiões, abri a boca. Brincalhão como é, Jorge arremessou uma tampa de garrafa, que se aninhou entre o céu da boca e a língua. Acordei e me vi diante daquele sujeito muito magro com aparência de assombração. Então me assombrei. Sentado, quis recuar. Como e para onde? Fugir. Esvanecer-me. Impossível. Abracei-o calorosamente, a suar e tremer, como se estivesse diante do mais insólito vivente. Olá, Nilto. Sentou-se e se pôs a falar. Pieiro ria, como sempre ri, até em velórios e enterros. Pedro se mantinha sério, a beber compassadamente. Você ainda bebe, Rolim? Não muito, mas em ocasiões como esta, sim. O garçom de aproximou de nós, solícito. Traga-me uma vodca sem gelo e água tônica. Falamos disso e daquilo, engolimos cevada e lúpulo, vimos pernas e ancas em movimento. Meia hora depois, o poeta anunciou: Preciso ir ao banheiro injetar-me uma substância. Pedro o socorreu: Suba a escada. Tive novo assombro. Então o homem vinha do Sul viciado em droga injetável e falava sem cerimônia daquela prática daninha, como se aquilo fosse normal? Vi-o afastar-se, sacolinha à mão, serelepe, alegre, quase feliz. Meus amigos se fizeram calados, carrancudos. Covarde, senti medo. E imaginei o pior: policiais, em ronda, flagrariam o pobre poeta em plena aplicação da droga na veia. Ao final, nós quatro, poetas de pouco nome, seríamos conduzidos, algemados, à delegacia. E tive a lastimável ideia de anunciar minha retirada: Preciso ir embora agora. Com Rolim falarei noutro dia. Por que assim, tão de repente? Ia explicar minha decisão, quando surgiu, sorridente e lépido, o nosso cândido conviva. Agora estou bem. Preciso de insulina a toda hora, meus amigos.
Temos nos visto, de vez em quando, mas não com a frequência com que desejo. Rolim anda sempre a correr, com se fosse pegar o último trem. Ora vindo de um compromisso inadiável, ora indo para outro mais inadiável ainda. Dividido entre a literatura e a advocacia, não sabe se deva salvar a noiva que cai no altar e voa pelos ares, branca e imaculada, ou a flor que deveria a ela entregar. Agarra-se à hélice do avião, para não sucumbir. E como estão os poemas? Escrevendo como posso, meu caro Nilto. E some, quase sem se despedir. Manda-me, por e-mail, ensaios de esmerada elaboração. Tento lê-los, mas, na minha ignorância, não consigo passar do primeiro parágrafo. Ele ri. Não faz mal. Um dia você me entenderá. Acho que não. E me penso num grande desastre aéreo, entre a eternidade da poesia e a fugacidade da prosa.
Fortaleza, junho de 2011.
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