(Salgueiro, Nilto e Netto, na casa do segundo)
“Conheci Raymundo Netto em 1850, na calçada da Cadeia de Fortaleza”. Assim eu poderia iniciar esta crônica e ser fiel ao modo de narrar deste jovem que adora o passado de nossa terra, vive cercado de livros e escritores, sejam mortos, sejam vivos. Em suas crônicas, os antigos conversam com os de hoje, passeiam pelas ruas, transitam pelo Passeio Público, pela Praça do Ferreira, pelas vias estreitas, sem pavimento, de prédios baixos. Porém, não o imitarei e serei fiel a mim mesmo e aos fatos: Conheci Raymundo Netto numa tarde de outubro de 2005, no interior de um veículo automotor, com destino a Aracati, onde se realizaria a 1ª Festa do Livro e da Leitura. Ao meu lado, Pedro Salgueiro. Vocês se conhecem? Sorridente e tagarela, Netto estendeu a mão e se apresentou. Lancei um livro recentemente: Um conto no passado: cadeiras na calçada. A curiosidade me sacudiu: Um conto longo? Não, um romance. Pedro se mantinha ao largo, olho na estrada. E o senhor é também escritor? Acabrunhei-me. Aquele sujeito, de quem eu nunca ouvira falar, dizia-se escritor e, ainda por cima, perguntava se eu escrevia? Tive vontade de lhe dizer: Tenho vinte livros publicados. Contive-me (quantidade não significa muito, pensei) e preferi ouvir a palavra apaziguadora de Salgueiro: Nilto é um dos poucos escritores cearenses da geração de 70 que se mantém atuante. O rapaz sorriu de novo: Ah! é?
Netto é homem sóbrio e lúcido, apesar de viver em bares, rodeado de boêmios, no Dragão do Mar, no Benfica ou nos mais afastados e mal falados botecos da capital cearense. Nunca o vi em transformação ou transformado em monstro ou anjo. Nunca o vi irromper do casulo e se metamorfosear em borboleta. É sempre ele mesmo, riso contínuo para todos, sejam musas, sejam lobisomens. A uns e outros, o mesmo afago nos olhos e nos lábios. Confessou-me, no entanto, não gostar nem um pouco deles, por mais que os ature. E, nestes tempos de intenso liberalismo sexual, do laissez faire, laissez passer, le monde va de lui-même, de Vincent de Gournay, se disse obcecado tão-somente por todo e qualquer tipo de fêmea humana, recusando-se, sempre, a aceitar qualquer aproximação de outro macho.
Afora essa idiossincrasia sexual, é um fomentador de eventos literários, desde lançamentos de livros a festas de variado feitio, como feiras (livres, de livros), encontros ou esbarrões de escritores, simpósios (que Manuel Bulcão chama de supositórios) acadêmicos, seminários (ou sêmens ários, no dizer do Poeta de Meia-Tigela). Em razão disso, conhece todo mundo, seja escritor belga, palestrante hindu, seminarista romano. E mantém relações (não sexuais) com todos e todas, qualquer que seja a nacionalidade ou o idioma (língua) do visitante, tendo preferência por línguas de trapo e línguas mortas, como latim e sânscrito.
Para completar esse desenho de sujeito esquisito, Netto tem outra amante: a fotografia. Gaba-se de ter fotografado todos os escritores cearenses, desde Antônio Sales. E aqueles que visitaram a terra de Alencar, aos quais abraçou e com eles posou para a posteridade: Jean-Paul Sartre, García Márquez, Saramago e uns menos célebres.
Anda com máquina fotográfica para cima e para baixo, à moda paparazzo (com quem é comumente confundido). Dia desses, levou uma carreira medonha de uma celebridade carioca em visita a Fortaleza e foi bater à minha porta. Passava da meia-noite. Assustei-me com seus gritos, ao portão. Socorri-o (primeiro escondi debaixo da cama minha companheira daquela noite), dei-lhe água com açúcar e o fiz deitar-se no divã. Consultei meu questionário freudiano e lhe fiz algumas perguntas. Ele apontou a máquina para mim, sorriu e quis saber se eu dispunha de uma cortesã para ele. O traquinas parece saber de tudo e ver até o invisível.
Além de nos encontrarmos em bares e livrarias, tenho recebido a visita de Netto com muita frequência. Chega ofegante, suado, sedento. Ofereço-lhe cerveja e uísque, por pura brincadeira, pois sei de sua aversão ao álcool. Ele sorri e explica: Não bebo, Nilto. Nunca bebeu? Sim, bebi muito. Certa noite, bebi tanto que vomitei no chão da casa de minha namorada. No meio da tragédia, urinei no sofá. Como epílogo, caí (e só acordei de manhã) debaixo da mesa. Três meses depois, estava casado. Porém, com outra.
Poucas vezes tem vindo só, talvez com medo de ser achincalhado pelo vulgo das letras. Prefere vir acompanhado de outros candidatos ao panteão literário. Alguns ainda adolescentes, como Urik Paiva, Priscila Peres e Robson Ramos. A maioria, porém, do final da casa dos 20 ao início dos 50. São risonhos e bebedores. Só faltam morrer de rir quando Salgueiro, depois da quinta garrafa de cerveja, tenta dizer “a aranha arranha a jarra, a jarra arranha a aranha; nem a aranha arranha a jarra nem a jarra arranha a aranha”. Ou quando Manuel Bulcão consegue pronunciar, com clareza: “Quero que você me diga, sete vezes encarrilhado, sem errar, sem tomar fôlego: Vaca preta, boi pintado”. Pedem mais cerveja, vão ao banheiro, sujam o chão e os sofás e me chamam de “engraçado”. Netto se esforça para não melindrar os amigos, ri com moderação e se diz cansado, muito cansado. Trabalhei muito hoje, meus amigos. Ofereço-lhe coca-cola ou guaraná. Ele se diz satisfeito, passa os dedos na vasta cabeleira e se aconchega à donzela mais próxima.
Fortaleza, junho de 2011.
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