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quarta-feira, 2 de novembro de 2011

Animal olhar quando se abre António Ramos Rosa (Marco Aqueiva)


(António Ramos Rosa)


ESTAMOS AQUI TALVEZ PARA DIZER: CASA
PONTE, ÁRVORE, PORTA, CÂNTARO, FONTE, JANELA –
E AINDA: COLUNA, TORRE... MAS PARA DIZER, COMPREENDA,
PARA DIZER AS COISAS COMO ELAS MESMAS JAMAIS
PENSARAM SER INTIMAMENTE.
RAINER MARIA RILKE

O mundo em pedaços. O homem que não vê sentido no mundo. O silêncio em torno das coisas. Engajado na busca do rosto do mundo sempre pronto a fragmentar-se e perder o sentido, o poeta encarna a aventura de reaprender a vê-lo por meio da poesia, interrogá-lo e poetizá-lo como tarefa de uma reaprendizagem essencial. “Experiência extrema, experiência-limite, negação de toda a experiência que não seja a da acção poética. Conceito de transgressão. O poeta moderno não escreve para dizer algo que conhece mas para dizer o que ignora, para encontrar o verdadeiramente desconhecido, o novo, o inicial.” Estas palavras do poeta-crítico português António Ramos Rosa que, referidas a esta experiência radical da poesia moderna, bem sintetizam a aspiração e a determinação com que ao longo de mais de cinquenta anos vem dedicando-se incansável e tenazmente às tarefas e coisas da Poesia. (Esta dedicação absoluta, refira-se de passagem, valeu-lhe de Bernard Nöel o epíteto de Francisco da Assis da poesia.) De sua longa folha de serviços consta indubitavelmente um mobiliário dos mais preciosos da literatura de língua portuguesa no século XX em poesia, crítica e tradução: em poesia, obras vigorosas desde O Grito Claro (1958) quando estreia em livro; na crítica, ensaios penetrantes como os publicados em Poesia, Liberdade Livre (1962); em tradução, notadamente o rigor e a sensibilidade aplicados a autores franceses como Paul Éluard (1963). Acrescente-se, ademais, sua participação no meio literário português como crítico colaborador de revistas como Seara Nova e Colóquio, tendo ainda exercido a co-direção da Árvore (1952-1954), Cassiopeia (1956) e Cadernos do Meio-Dia (1958-1960). O amor ativo de Ramos Rosa à Poesia lhe valeu, como referimos, uma aproximação com o autor de Il cantico del sole e tem lhe rendido com efeito o justo reconhecimento, como atestam os incontáveis prêmios recebidos, dentre eles, o Prêmio Pessoa (1988) e o Grande Prémio de Poesia APE/CTT (edição 2005) por Gênese.
Um centauro, poderíamos dizer da natureza do poeta-crítico Ramos Rosa: rosto, torso e braços humanos como a caracterizar o Olhar racional do crítico sempre pronto a aferir o que de poesia e afins vem a lume; garupa e pernas de cavalo como a restituir ao poeta a percepção animal algo merleau-pontyana, necessária à atividade criadora, quando lúcida e programaticamente busca a suspensão de todos os conceitos e hábitos adquiridos para atingir o estado de ignorância, único e fiel desiderato de sua palavra poética. A indissociabilidade entre poeta e crítico essencializada na figura do centauro pode ser ainda esclarecida na medida de sua fidelidade à “constante interrogação” que tem, no dizer desse autor, marcado a “literatura verdadeiramente moderna” e por convicção sua própria obra poética. “A minha poesia é cognitiva e metapoética. Se a metafísica é uma forma de conhecimento do universo, das coisas, da linguagem, então sim, tenho essa inquietação. Os meus textos não se reduzem a um âmbito circunstancial. Mas quando escrevo um poema, o tema que se me impõe imediatamente é o da palavra, da linguagem. Desde sempre.”

Esta exigência “cognitiva e metapoética” levou Eduardo Lourenço a distinguir Ramos Rosa entre as demais vozes portuguesas dos anos sessenta pelo que conceituaria de “poesia crítica”. Caráter crítico em que o ser se interroga no branco da página. Diz então o poeta-crítico: “No ponto de partida da criação não está uma positividade ou uma plenitude de ser, uma realidade constituída, mas sim o vazio e a distância constitutiva da linguagem, a negatividade e a carência. É este ‘nada’ que põe em ação a imaginação, que a torna a um tempo receptiva e criadora, permitindo à consciência abrir-se à inapreensível totalidade.” Diz então o crítico-poeta: “O ser é presente enquanto se interroga sobre o seu ser e se oculta assim atrás de si mesmo.” A poesia se abre experimentação no âmbito da linguagem imanente às coisas.

ANIMAL OLHAR

Meus olhos não fabricam
a realidade ou tu:
limpos barcos,
novidade acesa como a terra viva,
movimento de braços, amálgama
exacta duna.

Meus olhos não fabricam mas encontram.
A terra que se enche já vem cheia,
o hálito começa na claridade do céu.
Os homens dançam por vezes.
Este momento é teu.

Ó calmo olhar animal
da terra ao mar, popa
de espuma.
O mundo é natural, ridente, quando o verde rompe,
animal olhar.
Não estou só: porque te acendo entre as pedras,
abarco tua altura larga e teu ombro,
essência da fome visual e braço e nome.
Do teu calor me nutro e fortifico,
no silêncio da tua espera.
Brilha o teu tecido circular,
a terra é um átrio: o mar é perto.
Há passos de mulher descalça.
O mundo é novo.
A terra clara.
Eu sou o homem que te ama e escuta
concentradamente no calor dum muro.
Cerrado, oiço a tua unidade plural,
vejo teus dedos grossos,
tuas marcas fêmeas, tua elegância dolorosa.
Teus seios me nutrem, olhando-te.

Mastigo-te, raiz, e quase te oiço.
Construo um músculo verbal em teu ouvido,
alimento-me do teu mar visual e lento:
renasço pouco a pouco no teu horizonte dado.
Revejo-me num corpo ao pé do mar.

Silêncio no teu olhar, na tua boca.
Em tua língua primitiva o mar se olha.
É o deserto e falas, boca brusca
de ignorado alento.
Não te construo, constróis-me, construo-te
construo-te, mar,
parede pura,
criada.

Aqui onde o sol se acende em carne,
onde a casa é um nome de mar,
e os frutos e os espelhos
amadurecem o corpo solidário:
É Verão.
Aqui tu és
lenta verdade no sossego do sangue:
circulação de nomes e de peixes.

Aqui, à fome dos nomes e dos seres,
respondes, corpo do mar, coluna real
e teus acidentes se cumprem como ondas.
Aqui te palpo, vela, aqui te vejo, pomo,
formas meus braços, se te enleio,
desato simplesmente os teus anéis,
bebo-te sem te extinguir e sem me esperares.
Amanhã serás tu, sendo já hoje.

Recebendo-te como outra, outra nasces
e a ti mesma te igualas, porque és mar.
Teu corpo denso se aproxima, ora se afasta.
Há um perfume de uma noite inextinguível
nas tuas coxas claras.

Oiço-te ampla sob os ruídos.
Vária e verde, tapete derramado
sobre os ombros: acordas.
Não te peço qualquer nome, tu és banho
de calor fecundo, ondulação de frutos
sobre a mesa de pedra em que te aceito.

Em tua boca respiram as janelas.
tua música de muros e varandas
abre-se ao céu e às tênues páginas.

Vejo-te abundante e a minha sede cresce,
obscura ainda, renascente já.
Quero claramente reconhecer-me em ti.
Entrego-me sem espelhos, amálgama,
no teu silêncio me envolvo e te circundo.
És mais exacta, mais dura, mais viva.
A tua recusa cresce como um céu
por sobre o muro.

O “corpo solidário”, no dizer de Ramos Rosa, “carne do mundo”, na sugestiva expressão de Merleau-Ponty, abre-se aos olhos. Parcialmente. Vejo-te abundante e a minha sede cresce, // obscura ainda, renascente já. O sujeito aproxima-se em sede à obscuridade que como enigma se delimita e esconde-se ao olhar. “Aqui onde o sol se acende em carne”, o que se evidencia ao olhar faz-se tanto maior anelo que o poeta, “à fome dos nomes e dos seres”, busca o “corpo solidário” que teima crescentemente ocultar-se aos olhos: A tua recusa cresce como um céu / por sobre o muro.

Trata-se “aqui” de uma aventura do olhar em busca das palavras dispersas, não essencialmente diferentes de Flor rapariga amigo menino / irmão beijo namorada / mãe estrela música: as palavras cruzadas do sonho do Poema dum funcionário cansado, de O grito claro (1958).

Na senda de Rilke, todo olhos em direção ao Aberto, António Ramos Rosa parte em uma aventura “exemplar” em busca do “corpo solidário”, entrevisto nos fragmentos ou nomes dispersos: eis a aventura que o leitor aparelhado e atento pode acompanhar em “Animal Olhar”, um longo poema – do qual transcrevemos acima seu terço inicial – em que se configura o caminho inicial do poeta.
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