(Jorge Tufic)
Há tempos não compareço aos encontros semanais de escritores no Ideal Clube, em Fortaleza. Toda quarta-feira lá estão, a bebericar uísque, saborear petiscos, contar histórias, alguns dos mais conhecidos versejadores e prosadores da terra de José de Alencar – acadêmicos, quase todos –, com livros e mais livros publicados e elogiados em jornais. São bons conversadores, língua solta, sem maledicência: Beatriz Alcântara, Carlos Augusto Viana, Diogo Fontenelle, Fernanda Quinderé, Giselda Medeiros, Inez Figueredo, José Telles, Juarez Leitão, Linhares Filho, Lourdinha Leite Barbosa, Luciano Maia, Pedro Henrique Saraiva Leão, Regine Limaverde, Virgílio Maia e outros. Entre estes outros está o vetusto Jorge Tufic, nascido no Acre (de pais árabes) em 1930 e radicado no Ceará desde 1991. Não acompanhei (morava em Brasília), os seus primeiros anos aqui. Entretanto, nos líamos com frequência e desde cedo admirei a sua poesia amazônica e universal.
Tão separados estamos – sobretudo, eu deles (porque resolvi me enclausurar, para fugir do álcool e do tabaco) – que nunca mais nos vimos. Falam-me dele, por telefone. Dão-lhe notícias minhas, quer nas ruas e praças desta Fortaleza descalça, nas noites na Praia de Iracema ou no calçadão da Beira-Mar, quer nos botecos do Dragão do Mar, do Benfica e periferias. E nos entendemos de longe. De vez em quando, eu lhe mando uns recados de silêncio e luz e ele me envia uns impressos. Esta semana (terá sido na anterior?), o carteiro me despertou no meio da tarde: Seu Nilto, um pacote de Jorge Tufic (estava escrito na caixa). Calcei os chinelos rotos, vesti a calça (sonhava com Silvana, eu e ela numa selva, puros como aqueles habitantes do Jardim do Éden) e corri ao encontro da poesia. Rasguei a caixinha e encontrei sete objetos. Quatro tijolinhos e três lajotas. Entre aqueles (de formato comum), a 2ª edição revista e atualizada de Poema-Coral das Abelhas (Fortaleza: Expressão Gráfica Editora, 2010); as crônicas de O sonho de Tibério (Manaus: Academia Amazonense de Letras, 2011); a novela e os contos de Um hóspede chamado Hansen (Manaus: Editora Valer, 2009), todos da lavra de Jorge Tufic; e, de quebra, Território noturno (análise interpretativa), de Arimathéa Cavalcanti, 2003. Primeiro número da Coleção Madrugada, idealizada nos anos 70 e só agora iniciada, o impresso tem prefácio de Tufic, no qual (opúsculo) é estudada a peça Território noturno, do amazonense Alencar e Silva. As lajotas (porque em tamanho maior do que o dos tomos comuns, os tijolos) são Agendário de sombras: sonetos (Fortaleza: Realce Editora, 2009); Quando as noites voavam (Fortaleza: Expressão Gráfica, 2011); e os ensaios de Amazônia: o massacre e o legado (Fortaleza: Expressão Gráfica, 2010).
Algumas dessas obras conheço há muitos anos. Em Poema-coral das abelhas leem-se dois sonetos: na abertura e no encerramento. E explicam o porquê disso: “Vem de que mares essa nostalgia / que meus ossos fenícios engessou?” (“Cartago fui eu”), e “volto ao ponto que fui; sou de Cartago” (“A retirada”). Porém, a maior parte se constitui de poemas curtos ou mais longos, quase todos em versos livres. “Gramophone” é bem curtinho: “Os lírios da cardiola / aguçam a tropelia / dos íontens”. Aborda variados temas, ora com ironia, ora com humor: “Poetas e girassóis / estão sendo moídos. // E o pó dos seus dedos / clareia os moinhos” (“Antologias”).
Tufic é poeta essencial, desses que surgem de séculos em séculos e permanecem. Para o laborioso Francisco Carvalho, esse esmerado lapidador de versos, é ele, Jorge, o fenício nascido no Acre, “um prestidigitador de palavras”, um desses raros cultores de poesia, eis que “conhece os declives escorregadios da argamassa verbal”. Em suma, “um habilidoso tecelão de imagens poéticas capazes de justificar todos os possíveis desvios da semântica”.
Em Agendário de sombras, o sonetista se revela por inteiro. O volume se abre com sonetos de Luciano Maia e Alencar e Silva (saudações). Em “Prólogo” (como se o agendário fosse um longo poema), Tufic se apresenta: “Aqui estou para dar meu testemunho”. Visita a infância, o rio antigo e a paisagem natal (“muro de folhas, capinzal, varanda”). Avança no tempo (“Babilônio sutil, meu queixo fino / sobrevive às catástrofes”), cumprimenta os amigos, os bardos, mesmo os que não conheceu de perto, e vai destilando sonetos da mais apurada feitura. O que dizer de Quando as noites voavam? Poesia em estado natural e prosa poética, indígena, brasileira. Serão quatro livros num só? Boléka: “Contam que foi assim”. E foi. O arco-íris: “quando os bichos falavam e as mãos do homem ainda não tinham os prolongamentos mecânicos que destroem a natureza”. As noites voavam: “Quando eu posava sobre os elos perdidos”. (Seria “pousava”?) Uns poemas em inglês, traduzidos por Frank Hanson: “As I mused over the missing links”. E, para finalizar, “Contam contam”: umas crônicas, umas observações.
Tufic é também prosador dos bons, o que é muito comum. Bons poetas aprendem a escrever essencialidades e, quando se portam como narradores, mesmo que temerosos de parecerem versejadores em prosa, conseguem elaborar boas histórias, belas descrições, certas narrações. Em Um hóspede chamado Hansen temos uma narrativa mais ou menos longa (depende do ponto de vista do leitor), dividida em três partes e cada uma em pequenos capítulos, num total de 28. Os contos são curtos e vão do suicídio de um homem até um grito misterioso de uma mulher que recebe visita inesperada e indesejada. Tufic sabe narrar, sem querer ser mais um contador de histórias. Não conta tudo, vai pela penumbra, pelos desvios, pelos becos, até que o leitor se sinta íntimo da trama e a queira ouvir (ou ler) e dar-lhe continuidade. Ou não. Nas abas, o amazonense Zemaria Pinto faz um elogio de Tufic e se volta para a sua prosa de ficção e, especificamente, para as composições deste tomo: “um passeio por uma baudelairiana floresta de símbolos. A começar pela novela: uma alegoria da condição humana sob a ameaça constante do Mal. Os contos, de no máximo página e meia, condensam metáforas que pedem, no mistério do silêncio que as cerca, uma leitura calma, para uma reflexão sem pressa. Não estou aqui falando de hermetismo, mas do silêncio, da calma e d reflexão que a boa literatura exige e pede”.
Não poderei me ater, como quero e devo, às seis publicações de Tufic, por falta de espaço. Assim, saltei da poesia das abelhas para a prosa dos hóspedes e agora me vejo diante das crônicas de O sonho de Tibério. Que escrever? O vate acreano vai tão bem na prosa, seja ela a ficcional, seja a do observador da vida, que o leitor curioso tem vontade de não o largar mais. Começa o livro com os índios brasileiros levados a Paris em 1613, passa pela tradução de Iracema para o francês, em 1928, e sua reedição. Tufic trafega com tranquilidade pelos mais variados temas. Sempre muito conciso. Por isso, suas crônicas são notas, apontamentos, observações agudas de repórter, de escrivão da frota, de fotógrafo da expedição, de crítico da biblioteca de Babel.
Há ainda o ensaísta de Amazônia: o massacre e o legado. É obra fundamental do estudo da brasilidade ou da “amazonidade”. Passeio desde as cabeceiras do grande rio das antigas civilizações brasileiras aos nossos dias. José Ribamar Mitoso, filósofo paulista, faz a apresentação da peça, assim: “O escritor quer recuperar seu elo subjetivo, sua linguagem, sua tradição oral, quer ver a Amazônia com os olhos de quem conhece seu cheiro e sua poesia mágica. O poeta quer muito mais. Quer revelar seus sentimentos, antes que os outros o falsifiquem. Jorge Tufic avança ainda mais: quer revelar os sentimentos da Maloca, o Bastão do Ritmo, sua Sabença, e pronto”.
Assim fui eu a conhecer a pátria original de Tufic, desde os tempos mais remotos (da origem do homem americano) até a Praça do Ferreira, em Fortaleza, onde todas as tardes ele vai ver o vento passar, correr e se esconder entre as frinchas das altas portas dos casarões.
Fortaleza, 30 de outubro de 2011
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