(Pedro Salgueiro)
“Foi assim de repente, quando menos se esperava (em plena tarde morna) o sol tornou-se pálido, para sumir logo em seguida. O povo ainda não havia acabado de se assustar—ouvimos no meio da escuridão um bater de asas atravessando o vilarejo, como se um bando de pássaros saísse em revoada. Um pouco antes de os moradores da vila abandonarem suas casas em grande alvoroço, os bichos já alarmavam o acontecido: galinhas cacarejavam, galos cantavam em desespero, porcos fugiam pelas ruas atropelando as pessoas…
O relógio do mundo parecia ter sido alterado, os sons se intensificavam mais e mais; e não havia quem não gritasse ou corresse de um lado para o outro. Mulheres procuravam seus maridos, mães chamavam pelos filhos, ninguém se entendia.
Alguém com voz desesperada anunciou o fim do mundo: suas palavras ecoaram em outras bocas, e o que se ouviu depois foi um desfiar de rezas e choros. Os mais agitados gritavam o nome de Deus, pedindo ajuda; outros sussurravam um padre-nosso em meio ao soluço intenso. A maioria andava de um canto a outro feito barata tonta.
(Estávamos apreensivos desde a semana anterior ao acontecimento, quando a chegada de três grupos de forasteiros fez com que todos saíssem para as ruas e corressem, admirados, atrás dos automóveis, que pela primeira vez cortavam a poeira de nossas ruas. Das três equipes somente uma falava de maneira compreensível, as outras duas apenas trocavam entre si uns mungangos. De início se instalavam na praça da matriz, armaram barracas de lona e começaram a abrir grandes caixas trazidas nos automóveis [...] Com uma semana todos os aparelhos já estavam montados, grandes canhões apontavam, de diversos cantos da praça, para o céu. Os mais entendidos da vila, fingindo compreender as explicações dos invasores, tentavam acalmar a maioria, que permanecia apreensiva com tudo aquilo. Antes que os moradores dos povoados se acostumassem com os visitantes e suas extraordinárias maquinas de apontar para o céu, o mundo escureceu pela primeira vez às três da tarde.)
Mas também de repente, como tinha escurecido, começou a clarear [...] Na praça, os estrangeiros davam pulos de alegria e estouravam garrafas de espuma [...] os que falavam melhor tentaram, em vão, explicar aos curiosos o que havia acontecido [...] porém não souberam explicar de onde surgiu e para onde foi o imenso pássaro que sobrevoou a vila na escuridão.
No mesmo dia desmontaram os aparelhos e foram embora…”
(de A passagem do dragão, de Pedro Salgueiro)
“Na verdade, antes de mim, jamais se ouviu um relato confiável a respeito desses supostos inimigos…”
(de A grande fogueira, idem)
Em 2006, em Dos Valores do Inimigo, Pedro Salgueiro fez uma seleção entre os textos curtos que publicara até então (nas coletâneas O Peso do Morto, O Espantalho e Brincar com Armas). O conjunto assinalava um escritor de admirável sobriedade e controle da narração, sintético e cheio de lampejos brilhantes, mas traia igualmente certa timidez narrativa (que se sobrepunha ao talento imaginativo), poucas vezes indo até o fim do que sugeria com suas histórias. O adjetivo “curto” para os textos era tanto índice de qualidade quanto de limitação[1].
Essa oportunidade de rever seu percurso anterior permite valorizar ainda mais o salto que Inimigos, uma das obras de ficção mais notáveis publicadas no Brasil dos últimos anos, representa. Salgueiro utilizou alguns dos incluídos na antologia citada, juntando-os a outros (num total de 20) de altíssimo nível, fazendo um aliciante misto de romance e de conto e nos propondo uma idéia de sertão completamente desvinculada de quaisquer clichês ou personagens “típicos”.
As histórias se referem a Papaconha, povoado cuja inquietante característica é não ser fixo. Segundo o que corre no sertão, seus habitantes são os “inimigos” que estão sempre de mudança, aproximando-se, e podem chegar e invadir a região (um processo que leva gerações): “O boato corrente na região dava conta da existência de um povo estranho, que pretendia invadir e saquear todos os lugarejos, escravizar seus homens, aproveitar-se de suas mulheres e comer suas criancinhas. Mas a distância que os separava era tanta que, se um bando deles se dispusesse a andar até os vilarejos, certamente morreria no caminho, e as poucas crianças que porventura os acompanhassem chegariam tão velhas que nem forças teriam para contar as histórias do percurso”. Por isso, dissemina-se um sentimento de expectativa, de angústia, de fim de mundo, “esse medo que nos consome desde o começo dos tempos”.
Há quem acredite (como o narrador de Um Batedor) que infiltrados de Papaconha ocultem-se entre os moradores locais—e os “inimigos” podem estar entre quem menos se espera, como a esposa de Fronteira (o marido “cavou trincheiras no jardim e montou um observatório no galho mais alto da ingazeira do quintal”, nem se dando conta de que o adversário “se infiltrara há muito tempo em sua guarda, já organizava junto com ele as mil situações de defesa, sussurrando em seu ouvido opiniões absurdas, desfocando lentes, cuspindo debochado no assoalho da sala enquanto ganhava a sua confiança. Se não olhasse para tão longe já o teria visto, de sorriso maroto, destampando as panelas do fogo”).
Há quem se sinta forasteiro e “inimigo” como o narrador de Descoberta, ou nostálgico, como o de Madrugada (um daqueles textos anteriores, nos quais a intuição certeira do grande escritor cearense identificou as marcas desse universo de valores em choque, sem que possamos decidir qual é o lado “certo”); há quem se perca pelo mundo e acabe em povoados que podem ter a marca de Papaconha, e de qualquer forma são quase experiências com alienígenas, como os narradores de Aleine, A grande aventura e Perdido.
O peculiaríssimo universo sertanejo de Pedro Salgueiro, a ambivalente tensão que estabelece entre os pólos do atraso e da modernização, nos remete às parábolas e fábulas de Kafka como, por exemplo, Uma mensagem imperial ou Um médico rural[2], um mundo onde as pegadas morais se apagam, as certezas se dissolvem, a realidade se torna ameaçadora (e muitas vezes cômica), como se também nos perdêssemos por trilhas inesperadas, sem que haja um único elemento sobrenatural, como experimenta o marido atrás da esposa desaparecida: “De repente, um medo tomou conta de mim… e disparei na mais apressada carreira de que as minhas pernas foram capazes… Corri a madrugada inteira, subi e desci serras, encontrei nova estrada—sempre me afastando. Hoje não me arrisco a perguntar por Aleine, apenas observo disfarçadamente os rostos femininos em meio à multidão. Não olho muito para não despertar suspeitas, pois sei que—enquanto eu a procuro—muitos fariam de tudo para me impedir de chegar a ela”. Tudo e todos se tornam estranhos e absurdos. E a linguagem brilha, absolutamente irretocável, nessa obra-prima (acho que já dá para arriscar essa avaliação ousada) da nossa literatura atual.
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[1] Já não tenho mais essa opinião. A leitura de Pedro Salgueiro, aliás, está me demonstrando mais uma vez como é interessante e absorvente acompanhar a “evolução”, por assim dizer, de um determinado universo criador. No momento em que escrevi a espinha dorsal do texto acima, não havia lido nem O peso do morto nem Brincar com armas, cuja leitura modificou consideravelmente os dados. A obra de Salgueiro é um pouco como a sua cidade de Papaconha: nunca fixa, sempre movente, e inquietante.
[2] Discordo, nesse ponto, de Miguel Sanches Neto, o qual escreveu um simpático posfácio à edição da 7 Letras (Coleção Rocinante, 2007), em que afirma: “Se fosse para eleger um parentesco literário, poderíamos dizer que a vila dos contos e a cidade móvel chamada Papaconha [...] são desdobramentos das orbes fictícias de Italo Calvino (As cidades invisíveis), o que significa dizer que elas guardam as mesmas latitudes imaginárias, funcionando mais como metáforas do que como pontos em um mapa.” A meu ver, isso passa longe do coração do universo de Salgueiro, uma vez que—sem ser menos profundo ou complexo—o universo de Calvino tem uma benignidade, uma deliberada leveza, uma transparência, muito pouco afins de Papaconha e das vilas que aparecem em Inimigos, mais próximas de Kafka, de José J. Veiga e Juan Rulfo, com um sentido mais trágico e “pesado” da existência.
*Resenha publicada originalmente, de forma mais condensada, em A Tribuna de Santos, em 25 de outubro de 2011
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