Ao deputado José Dias de Souza
Eu era menino no Estevão quando ouvi pela primeira vez da boca de minha avó materna o nome do autor de A Revolução dos Bichos que ela leu para mim, uma tarde após o almoço, sentada numa cadeira de balanço enquanto eu repousava a cabeça sobre os seus joelhos. Trata-se de uma fábula moderna, explicou-me, escrita por um inglês que à maneira de La Fontaine substituiu os seres humanos por animais; na trama engendrada pelo autor eles vivem em uma fazenda modelo...
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(George Orwell)
Eu era menino no Estevão quando ouvi pela primeira vez da boca de minha avó materna o nome do autor de A Revolução dos Bichos que ela leu para mim, uma tarde após o almoço, sentada numa cadeira de balanço enquanto eu repousava a cabeça sobre os seus joelhos. Trata-se de uma fábula moderna, explicou-me, escrita por um inglês que à maneira de La Fontaine substituiu os seres humanos por animais; na trama engendrada pelo autor eles vivem em uma fazenda modelo...
Embalado por sua bonita voz de contralto, ouvi atentamente o conto um pouco extenso, publicado numa das edições da revista Realidade que divulgava todos os meses um autor, entre os quais lembro ainda dos nomes de Walmir Ayala [O Coelhinho Miraflores] e Borges, Jorge Luis Borges [O Homem da Esquina Rosada], que se gravaram misteriosamente em minha memória. Creio que eu teria nessa época doze ou treze anos e já pensava seriamente em tornar-me escritor.
Menino solitário, tinha Orwell o hábito de inventar histórias e de travar longas conversas com pessoas imaginárias – tal como eu próprio costumava fazer, passeando à sombra dos carnaubais – numa antecipação ao indivíduo autônomo que viria a ser com o tempo, como um “emblema de um período histórico e uma exceção entre os seus pares”, segundo a exatíssima definição forjada pelo jornalista Daniel Piza, seu apresentador brasileiro em relativamente recente edição de Dentro da Baleia [Cia. das Letras, 2005].
Celebrizado por A Revolução dos Bichos, considerada uma alegoria anti-stalinista e, sobretudo, pelo profético e incômodo 1984, romance que antecipa, com as cruezas do realismo, a vida do individuo sob um aterrorizante e onipresente controle estatal que não reconhece a individualidade e a liberdade de expressão; enfim, um regime sinistro e universal representado pela figura do Big Brother [que inspiraria o reality show homônimo], tirano impessoal que tudo sabe e tudo vê descrito, por Orwell, com impiedosa e visionária lucidez.
O escritor e jornalista inglês, falecido aos 56 anos em 1950 com a mesma idade que eu tenho hoje, acreditava que o individuo autônomo, ou seja, aquele tipo de individuo que defende ideias próprias e cultiva o mau vezo de pensar que a política é inseparável da coerção e da impostura, seria, por sua integridade e probidade intelectuais e morais, eliminado da existência...
Tinha o criador do Big Brother habilidade com as palavras e uma especial capacidade para enfrentar fatos desagradáveis, compensando-se, ao escrever e produzir uma obra, dos fracassos que resultam dos embustes com a vida cotidiana.
Exemplo, ele próprio, de indivíduo autônomo, como todo escritor cônscio do que cria, enfrentou George Orwell com dignidade inexcedível as adversidades, entre as quais a fome, a insistente pobreza e a sensação de fracasso, sem jamais trair a classe dos escritores – pessoas como ele o reconhece obstinadas e decididas a viver até o fim. E, sempre acreditando que há quatro grandes motivos para escrever em prosa, a saber: 1] o puro egoísmo; 2] o entusiasmo estético; 3] o impulso histórico e 4] o propósito político que ele, fiel a princípios, possuía em alto grau, como um “emblema de um período histórico e uma exceção entre os seus pares”.
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