Não gosto de misturar alhos com bugalhos, mas este encargo de divulgador de livros me sujeita a fazer o que não quero. Por mim, todo dia escreveria um artigo ou uma resenha. Entretanto, o tempo é curto como o meu lençol e a preguiça longa como a do início do mundo. Para não ser tão (desculpem o jogo de palavras) confuso, selecionei para esta nota seis tomos de versos e deixei os de prosa (de ficção e ensaística) para outro dia. Como tenho afirmado, sinto enorme dificuldade de escrever, quer sejam as mentiras de que são recheados os meus escritos ficcionais, quer as verdades (informações) que compõem meus rabiscos jornalísticos, como este. Porém, deixemos de lorotas e vamos aos impressos.
Primeiro, uma sucinta relação dos títulos e seus respectivos autores (em ordem alfabética): O chamado, de Araceli Sobreira Benevides; A caça virtual e outros poemas, de Ivo Barroso; O sol nas feridas, de Ronaldo Cagiano; Mais lampejos, de Silmar Bohrer; Agora que os dias e as andorinhas se foram, de Valdivino Braz; e Poeta, mostra a tua cara, (obra coletiva). Araceli só conheço por correspondência. Mora em Natal, bem ali, pertinho daqui. Qualquer dia desses, voarei até lá. Aproveitarei o passeio para conhecer Franklin Jorge. Também nunca vi Ivo – isto é um cacófato? – (mas isto é imperdoável, pois é ele um dos mais conceituados tradutores de poesia do Brasil). Vive no Rio de Janeiro, bem distante desta bela Fortaleza. Fui apresentado a Cagiano em Brasília e, desde o primeiro cumprimento, passamos a nos ver quase diariamente. Silmar nunca avistei e dificilmente o alcançarei com a vista: mora nos confins (para mim) do mundo (Caçador, Santa Catarina), pertinho de minha primogênita Fernanda. Meu amigo Valdivino está em Goiânia há quase meio século. Pelo menos uma vez por ano nos víamos, ora em Brasília, ora na capital de Goiás. Bebíamos toda a cerveja dos bares e falávamos de quase tudo. Com Oliani (o que me mandou a coletânea do final da lista) nunca estive. Perambula pela antiga capital federal.
Deixemos de lengalenga de cronista sem assunto e passemos aos versos.
O chamado ou um cântico para a liberdade e outras poesias (2ª Ed. São Paulo: Scortecci, 2008), de Araceli Sobreira Benevides. Composto de versos livres, alguns poemas longos, uns com títulos, outros não. Em “O vestido”, elegante metáfora, há versos de muita beleza: “Tens na lapela as homenagens / pelos feitos de vida e morte... / e, por isso, me chamas, alucinado”. Profissional das letras, a poetisa paulistana é formada pela Universidade Federal do Ceará, doutora em Educação e exerce a função de pesquisadora na área de formação de leitores em Natal (Universidade do Estado). Vê-se (ouve-se) na poesia de Araceli a voz de personagens (e isto é raro, sobretudo em jovens bardos). Ou seja, a capacidade de o eu-lírico se afastar do poeta e se refugiar no interior de outros seres (imaginários). No poema “Da rua”, a narradora é uma “vadia” ou mendiga, uma desvalida: “Há templos vagos e insípidos / na noite do meu dia.../ Há cortesia e gestos ríspidos / no sacerdote que não me via...” E há outros sujeitos com voz, como nos poemas de “A cigana”.
A caça virtual e outros poemas (Rio de Janeiro: Record, 2001), de Ivo Barroso. Como se lê nas abas, trata-se, ao mesmo tempo, da verdadeira estreia do vate de Ervália e de uma antologia, pois as duas primeiras publicações dele apareceram em Portugal, em “edições limitadas”, e “se destinaram aos amigos de lá e daqui”. O conjunto de poemas ganhou prefácio de Eduardo Portella, que assim resume a biografia de Ivo: “poeta que, acompanhado o tempo todo pelo leitor antenado, pelo tradutor bem-sucedido, pelo crítico agudo, sempre foi poeta selecionado”. Noutro desvão do breve estudo, Portella aponta para “o paciente trabalho da linguagem, levado a efeito pelo poeta”. E mais: “o poeta investe no alargamento do horizonte existencial, desdobrando certo antropomorfismo, em qualquer hipótese sem excesso e sem parti pris”. Só lendo Ivo Barroso, para se constatar isto.
Não é hora de falar do tradutor, mesmo que de Eugenio Montale, André Malraux, Hermann Hesse, Nikos Kazantzakis, Umberto Eco, Arthur Rimbaud, Italo Svevo, Shakespeare, Gide, Strindberg, Jane Austen e tantos outros grandes nomes da arte literária. É hora de fazer menção ao menestrel destas mais de 200 páginas de fina poesia. Mas, sendo o espaço muito limitado, ficarei a dever um estudo dela. Assim, prometo-me fincar as unhas no dorso desta belíssima coleção e ir à caça virtual dos poemas de Ivo Barroso. Nem que me prendam e devorem.
O sol nas feridas (São Paulo: Dobra Editorial, 2011), de Ronaldo Cagiano. A capa é muito sugestiva: uma cadeira suja num fundo de quintal (talvez), parede de tijolos verdes, barro amarelo no chão sem uma só folha de árvore, a luz do Sol, solidão. A poesia de Ronaldo é também isto. E também revolta pela ausência de Deus no destino dos homens (suas criaturas?): “Onde estava Deus, / quando Hitler avançou / com seus coturnos, suas bombas” (...)
Como anotou Reynaldo Damazio nas abas, “Os poemas de Ronaldo Cagiano cobrem um amplo espectro de temas e formas, que vão do sentimento amoroso à reflexão indignada com os desmazelos do tempo presente”. O título da obra vem de um poema dedicado a José Edson Gomes: “A linguagem ouriçada da dúvida / e seus olhos sobrevoando o cômodo sentido das coisas / revelam-me o imponderável, a finitude, / a incorpórea certeza da hora final”. Quase todos os poemas são dedicados a antigos e novos jograis ou se apresentam com epígrafes. E isto significa diálogo com a poesia “passada” e a de hoje, dos seus contemporâneos. Ou certa intertextualidade, uma das características da boa poesia. Como na “Conversa com Murilo Mendes”, assim iniciada: “A poesia está em pânico, Murilo, / diante desse mundo / e seu quartel de demônios”.
Mais lampejos (Caçador, SC: Edição do autor, 2011), de Silmar Bohrer. A explicação para o título está nas abas, em bilhete do bardo gaúcho ao editor: “enquanto vasculhava meus alfarrábios no ‘ajuntamento’ desses tantos versos-ideias, versos-pensares, relâmpagos do pensamento, me chegavam, como sói acontecer no dia a dia, novos versos, novas rimas, a Poesia de que se reveste nossa vida e nosso mundo. Assim, entre o pastoreio de palavras e o entremeado de sentimentos, cheguei à compilação deste novo volume de lampejos”. A publicação, embora contida em 130 páginas, é capsular, posto que os poemas são curtinhos, de uma linha (“estar lendo é estar se preparando”), de duas (“férias, um fazer nada / fazendo”), de três (“não dê ouvidos para o mundo / ou acabará como ele: / mau”).
Agora que os dias e as andorinhas se foram (Goiânia: Ed. PUC-GO/Kelps, 2011), de Valdivino Braz. Dividida em duas bandas – Livro I (sem título) e Livro II (“Cascas secas de cigarras mortas”) –, a obra é composta de partes. A primeira dá título ao todo e se inicia assim: “São raras, agora, / as andorinhas / num fim de tarde sombria, / prenunciando chuva”. Como os bons poetas românticos, aqueles do mais intenso telurismo. A segunda parte, intitulada “Configurações do lote baldio” (há um subtítulo mais longo: “Tratado do olhar subjetivo e da essência poética”), pode ser lida como um poema longo. Tem feição modernista, quer na linguagem, quer no tema abordado: “O que nos conta / um lote baldio?” “Estrela do meu destino” é dedicada a Maria, a mãe dos filhos do vate de Buriti Alegre. Assim começa: “Acima de tudo, / paira a pequenina estrela”. A outra metade da coleção traz cinco poemas/partes: “Estranhamento (O pio da coruja)”, “Aquela casa”, “Caranguejos”, “Cascas secas de cigarras mortas” e “A noite do poema”. O primeiro, feito de nove pedaços, escorre fora das medidas conhecidas do verso, como prosa poética: “A vida se toca de mau jeito, flauta de osso que se lasca na boca”. O segundo é uma homenagem a Beethoven e sua bagatela para piano conhecida como “Para Elisa” ou “Pour Elise”. Também escrito em oito trechos de prosa. A terceira parte tem dois poeminhas concisos e uma prosa. A que dá título a este segundo conjunto tem onze poemas. A publicação se encerra assim: “Amada prateada dos poetas” (início do primeiro poema) e vai até “No deserto da noite, / no frio da folha em branco, / escorre a tinta quente / de quem escreve / enquanto morre”. Amém, vivente do novo Parnaso!
Para encerrar este apontamento, algumas linhas para o sexto tomo deste catálogo: Poeta, mostra a tua cara – volume 8 (Porto Alegre: Grafite, 2011). Organizada por Ademir Antonio Bacca e Cláudia Gonçalves, a antologia conta com 38 jograis. Como ele explica, trata-se de um projeto criado pelo Congresso Brasileiro de Poesia, em 1991. O objetivo: apresentar aos estudantes de Nova Prata (onde se realizou o congresso) “o maior número possível de poetas que estavam anunciando sua participação na terceira edição do evento” (1992). O impresso me chegou às mãos por iniciativa de Luiz Otávio Oliani. Não mencionarei um a um os menestréis ou os poemas, por falta de espaço. Porém, para não dizerem que fui avaro nestas derradeiras anotações, citarei uns versos de Oliani: “a mão estendida / abençoa o trigo // à procura do ponto / ágeis dedos / manipulam a massa / do mundo // mas a vida só faz sentido / quando se reparte o pão”.
Nada mais tendo a dizer, dou por encerrado o presente comentário ou esta notícia.
Fortaleza, 17 de janeiro de 2012.
/////