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terça-feira, 6 de março de 2012

A beleza d'Os campos noturnos do coração (W. J. Solha)



Marília Arnaud vem marcando cada vez maior presença na literatura brasileira contemporânea com seus belos contos. Ganhou o Prêmio Novos Autores Paraibanos – da UFPb – em 1997, com “Os Campos Noturnos do Coração”, colecionou elogios com “O Livro dos Afetos”, editado pela 7letras em 2005, e participou de coletâneas nacionais importantíssimas, já em 2006, como a de “Contos Cruéis”, da Geração Editorial, e “30 Mulheres que Estão Fazendo a Nova Literatura Brasileira", da Editora Record. Paula Barcellos, em artigo recente no Jornal do Brasil, destacou a presença de nossa autora dentro do volume – a ser lançado em julho pela Garamond – de estórias curtas criadas pelos maiores nomes do ramo no país, numa grande homenagem de Rinaldo de Fernandes aos 60 anos do “Sagarana”, do Guimarães Rosa.

Li os originais da narrativa que ela produziu em cima do “Sarapalha” e constatei que faz jus ao nome – ou renome – que Marília Arnaud vem conquistando na Paraíba e lá fora. Li “O Livro dos Afetos”, idem. Quero, porém – aqui no “Augusto” –, falar sobre "Os Campos Noturnos do Coração", publicado há seis anos, mas que somente agora tive oportunidade de conhecer, numa comprovação de que está certo o povo quando diz que há males que vêm para bem, pois a leitura do livro me aconteceu num momento especial, que a favoreceu muito.

Revi por acaso, numa das noites anteriores, o último filme de John Huston – "Os Vivos e os Mortos", de 1987 – e, mais uma vez, fui colhido pela narrativa emocionada e comovente da personagem de Anjelica Huston ao marido, despertada por uma canção ouvida à meia-luz, na saída de uma festa tradicional da família irlandesa, do Dia de Reis. Na manhã seguinte retomei meu velho volume com os "Dublinenses", do Joyce, reli o conto "Os Mortos" – "The Dead", como no título original de sua versão cinematográfica – e vi o trabalho de Huston sob nova luz. Por coincidência, ligo a televisão na outra noite... e lá está a cena de Dublin, 1904, de novo. E ah, como foi bom poder ver a bela melancolia nostálgica do texto de Joyce roteirizado por Tony, filho do diretor, com sua terna lembrança dos mortos!

"Os Campos Noturnos do Coração" surge uma década depois de “Os Vivos e os Mortos”, oitenta e cinco anos após o “Dubliners”. Em comum com o filme e o conto final do livro, tem o refinamento ético e estético, a mesma requintada temática, a mesma poética e tristíssima visão do mundo, que Marília Arnaud estende por todas as dez peças de sua edição.

E ele me remete, também, ao "Mrs Dalloway", da Virginia Woolf, aos filmes de James Ivory e Lucchino Visconti, à música de Scriabin. Há um verniz, em seu acabamento, que considero incomum.

Exemplo? Está bem:

"Prédios, letreiros, pessoas. Calor. Cor. Um vermelho de vestido esvoaça lá, no ponto de ônibus. O azul e branco dos colegiais assaltam as calçadas. O colorido anônimo dos operários empurra a manhã para dentro de mais um dia".

Gosto muito de livros de Arte. Muito. Não só pelo prazer infantil de ver figuras, mas pelo texto primoroso dos grandes historiadores e críticos como Sheldon Cheney, Élie Faure, Giulio Carlo Argan, produzidos pelo eficiente esforço de traduzir em palavras a riqueza cromática das imagens que os seduz e a mim também. Os contos de "Os Campos Noturnos do Coração" têm a mesma suntuosa beleza obtida por esses autores, e o trecho a seguir – sobre um grupo de telas espalhadas num quarto – vem a propósito: "Ponteiros e números dançavam num mostrador de relógio que não mostrava o tempo. Correntes sangravam sobre lençóis brancos. E túneis, muitos túneis".

Isto é Bergman. Belo e amargurado como em "Sonata de Outono", angustiante e doloroso como em "Gritos e Sussurros", rico de imagens como em "Morangos Silvestres".

"Os Campos Noturnos do Coração" me surpreende. Como "O Livro dos Afetos" (7letras 2005) – também de Marília Arnaud – é, pela forma e conteúdo, uma obra que enobrece a nossa literatura.

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