Esse podia ser o título desse livro de Nilto Maciel, que terminou por ser titulado de "Luz vermelha que se azula". Isso porque esse é o título de um dos contos e como título ele se apresenta mais carismático do que outro qualquer. É importante, no entanto, saber que esse seu livro foi ganhador do "Prêmio Moreira Campos", e aparece editado, em 2011, pela Expressão Gráfica Editora, com 216 páginas.
Nilto Maciel é um escritor que estilhaça estruturas. Extrai das criaturas, contornos estranhos, como manias esquisitas, sandices alojadas nas suas metáforas. Ele se põe numa zona de observação do humano que se instaura no meio termo entre superfície e profundidade. Daí fica pescando estranhezas que se acumulam nas intimidades, para alçá-las, em seguida, à pele das coisas. É, dessa prospecção, o produto transformado em signo literário. Cada personagem seu, e não são muitos, é vazado de dentro para fora, regurgitando impurezas nunca dantes demonstradas. Chega até a ser cruel sua garimpagem feita nos vastos porões do humano. Afinal, não há reservas na hora das revelações.
É por isso que o inconsciente coletivo é vasculhado por sua pena que se torna chave para se chegar ao que há de sórdido e de santo no interior dos personagens. São abismos que de tão vastos, só a palavra se encoraja para o mergulho. Daí que sua primeira batalha é com a escalação de um time vocabular que possa triunfar na hora de nominar o que o sombrio fornece. Essa seleção começa pelo nome dos personagens. São: Sibila, Severino, Ambrósio, Bonifácio, Marília, Eveline, Osmundo, Astúrio, Mafalda, Januário, Noronha, Nirvano, Astrolábio, Gertrudes, Elísio e Osmira. É como se um exército fosse ressuscitado de histórias antiquíssimas onde Deus e o Diabo se digladiassem em disputa pelo que o apocalipse preservou da humanidade.
Sobre tudo isso Nilto Maciel é um maestro regendo vozes. Não são gritos, mas sussurros de poucos que se tornam muitos. São falas que se entrelaçam, mesmo quando Deus e o Diabo confabulam na divisão dos seus territórios. Deus é o Todo-Poderoso, a Excelência, o Supremo, o Chefe, O Maioral, um batalhão de nomes e formas para vencer a engenhosidade do Diabo, do Capeta, do Gênio do Mal que também se divide em muitos para a batalha final entre bem e mal. É como se estivéssemos vasculhando antigos livros salvos dos templários ou algo que dos escombros da Biblioteca de Alexandria só agora fosse descoberto. Há muito porão no que Nilto Maciel escreve, o que transforma o ato de leitura da sua escrita em uma escavação sem limites.
Esses porões retêm figurações barrocas, às vezes surreais, como se, antes da escrita, o autor tivesse habitado essas sombras, e como se o leitor devesse lá estar para continuar essa escrita. Uma memória enclausurada transpõe o rés do chão trazendo à superfície, pela montaria do verbo, folhas mortas, papéis velhos, trastes, estrume e mofo. Não dá para lê-lo no sótão. Não dá para reescrevê-lo com claridades, nem com amplitudes. É por isso que alguns de seus contos, como "Bom-dia, meus anjinhos" dariam um roteiro adequado a um filme de Pasolini. A perversão não isenta o claustro para o seu alastrar-se.
Para conseguir esse resultado, um dos seus trunfos é a linguagem. Através dela, com sua variedade de feições, ele transita pelo culto, pelo coloquial, pelo regional e pelo popular. É a situação que lhe traça a direção do signo verbal. Daí podem surgir belos jogos de palavras que terminam por instaurar a literariedade. Exemplo: "Dirceu perambulava pelas ruas do centro, a ver navios ancorados nos olhos das meninas (…) abria gavetas como se abrisse pernas". Da mesma forma se comportava Januário que "passava o dia a sonhar com passarinhos e sardinhas". São personagens urbanas que enganam a vida, ocupando o ócio com inusitadas manias.
Outra vertente por onde se pode detectar o estilo de Nilto Maciel fica por conta do fantástico. São humanos que se tornam deuses, o que faz com que o maravilhoso comprove que o escritor tem um invejável conhecimento dos meandros dos livros sagrados das mais variadas religiões. É um templário do século XX e um entendido em mistérios. Daí sua facilidade, inclusive, na decifração de "Dom Casmurro", através do texto "Dez Libras Esterlinas". Ele desconstrói a obra machadiana, promovendo um desaparecimento de Ezequiel a partir do momento em que um personagem passa a ingerir as dez libras. Parece uma brincadeira com o leitor, mas sua mania de desmontar estruturas é característica de seu estilo.
Esse desmonte faz com que sua escritura promova uma fragmentação do universo em que circulam os personagens. Um tal Ascânio Bustamante Coimbra precisa gostar de uísque para se tornar escritor. É aí que ele faz um périplo por uma Fortaleza literária que se estende da Parquelândia ao Ideal Clube, cavalgando imagens superpostas de escritores reais. Parece estar em permanente "delirium tremens", o mesmo que acomete Belisário no conto seguinte. Fortaleza passa a aconchegar essa claque de personagens nefelibatas visionários.
Por fim, o leitor se pergunta por que "Um botão chamado Moésio", e aí aparece um pequeno conto, de apenas duas páginas, cheio de encantamentos. O filho abre o baú da mãe que falecera há pouco. Vasculha e encontra entre tantos teréns guardados, o botão de futebol de mesa de quando era garoto. É aí que toda uma memória se abre na sua mente. Os guardados de sua mãe, fenomenologicamente, lhe devolvem uma infância perdida no tempo. Até a voz da sua mãe aparece na voz da esposa. Esse milagre só a literatura consegue.
(Diário do Nordeste, Caderno 3, 28/2/2012)
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