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quarta-feira, 21 de março de 2012

A crueldade de Anita e os dragões de Wilson Gorj (Nilto Maciel)




Depois de receber admoestações de amigos e leitores desconhecidos, decidi dar um castigo à minha pupila Anita Sabóia. Pela segunda vez, ela me indispôs com parte da inteligência brasileira. Primeiramente com os comentários deselegantes à coleção de crônicas A mulher dos sapatos vermelhos, de Carlos Herculano Lopes, e, mais recentemente, com o massacre ao romance O senhor Irineu, do jovem Daniel Coutinho. Revelei, por telefone, o mal-estar sofrido, há algum tempo, por ser acusado de crítico ranzinza, exigente, e de “coiteiro de raparigas analfabetas” (assim salientou um leitor muito erudito). Tão cedo não lhe daria ouvidos ou não reproduziria mais suas opiniões em minhas crônicas. E, para tornar a vingança próxima da crueldade mais sádica, emprestei o novo conjunto de minicontos de Wilson Gorj, Histórias para ninar dragões, a uma desafeta de Anita, a pequena e doce Manoela Ximenes, também estudante de letras.
Uma semana depois, ela me visitou. Antes dos cumprimentos de praxe, quis ser (deve ter decorado a frase) engraçada ou inteligente: Vim trazer os dragões de Gorj. Entregou-me o objeto: Muito cuidado com eles. Não alimentei suas pretensões e assumi o papel de senhor da casa e do conhecimento. Ofereci guloseimas e bebidas, quis saber se tinha lido direitinho o impresso, como iam as aulas na faculdade. E disparei a primeira pergunta fundamental: Gostou do título? Começou ferina, para espanto meu: Lembra o de um livro de Péricles Prade, Alçapão para gigantes, pelo senhor mostrado, quando aqui estive. Discordei. Não da informação, mas da comparação. Remete muito mais a títulos da chamada literatura infantil. Entretanto, as composições curtas de Wilson são para adulto.

Para ter certeza de ter lido a publicação toda, indaguei se poderíamos analisar o espaço da ação. Em “Plano de voo”, o drama se passa num hospício. Em “Revertere ad locum tuum” (retornar ao local de origem), pessoas velam (numa capela ou na sala de casa) um não-cadáver ou um “corpo ausente” (porque cremado). Para a estudante, o espaço é o menos essencial em relatos breves. E fez a primeira importante ponderação, ainda tímida, após a releitura da obra de título latino e cemiterial: Microcontos precisam de desfecho “radical”, como piadas e anedotas. Devem chocar o leitor. E esse é o mal deles. Em “A chave do reino”, um caminhoneiro toma o lugar do cavaleiro medieval, do cruzado que partia para terras distantes e deixava a esposa em casa, protegida por cinto de castidade. O epílogo é cruel (para o marido): “O chaveiro, finalmente, teve a sua vez”.

Relemos outras peças, tomamos suco de tamarindo (ela fez careta; eu estou acostumado aos azedumes) e me referi aos nomes de alguns escritores novos. Por que gostam tanto de microcontos? Tentei não dizer tolice: Nestes tempos de pouca leitura (falta de tempo, primazia do cinema, da televisão, do computador, etc), substituída pela fruição de atividades menos requintadas, é natural a tendência para uma literatura miniatural, pronta a ser consumida entre uma novela e um jogo de futebol, ou própria para dar descanso ao ouvido.

Manoela trouxe à tona outra questão intrigante: Por que os personagens de minicontos não têm nome? Não sei se acontece com todos. Não leio todos os minicontistas novos. Ela me interrompeu: Está correta esta palavra “minicontista”? Dá ideia de contista pequeno, menor. Tentei me explicar: É verdade. Como se falássemos de anões que escrevem contos. Ou crianças. E retomei a resposta à questão dos nomes dos seres fictícios. Gorj prefere contar episódios engraçados na vida de pessoas comuns, como o romeiro de “Visão milagrosa”, o pescador de “Compensação”, o assassino de aluguel de “O profissional”, o maestro de “Dissonantes”, o pai de “Hipócrita” (longo, para os padrões da coletânea, com diálogos e narração). Na maioria das vezes, porém, isto (o especificar profissão ou característica do protagonista) não merece destaque. Vale mais o embate social ou doméstico ou o conflito interior. Reli o pequeno, mas contundente, “Rumo ao desconhecido”. O personagem é apenas um homem muito viajado, envelhecido e aquietado na terra natal. A moça balançou a cabeça: Esse não é uma piada.

Pedi licença para ir ao banheiro, esfriar as têmporas e maquinar o desenlace de minha história naquela tarde inimaginável (eu tinha planejado ir ao centro da cidade e conversar com alguns camelôs). De regresso à sala, flagrei a criaturinha a folhear A montanha mágica, deixada sobre a mesinha da sala. E a linguagem? Não opinaria, por se tratar de tradução. Eu me referia à de Wilson Gorj. Corou de vergonha, como nos romances do século XIX. Remexeu-se no sofá: Às vezes, ele brinca com as palavras, faz joguinho com elas. Evocou “Cortes” e o leu em voz alta: “Cortou as despesas, mas não conseguiu quitar as dívidas. Por isso, cortaram-lhe o crédito. Depois, vieram cortar a água e a luz. No escuro do banheiro, foi a sua vez de cortar os pulsos”. E sentenciou: Apesar da tragédia, não chega a ser uma peça de linguagem apurada. Sorri. Tragédia precisa de linguagem apurada? Certamente. A comédia se contenta com a chulice, em algumas ocasiões. E ainda assim faz rir.

Ao pressentir na minha visitante vontade de ir embora, inventei outro assunto: Você gostou mais dos minúsculos relatos – três, quatro, cinco linhas – ou dos mais extensos? Na sua sinceridade de quem não teme nada, fez-se arrogante: Nos contos mais curtos, Wilson Gorj, aqui e ali, faz apenas piada ou jogo de palavras, como em “Eça é boa”. Ou meros exercícios de imaginação, como em “Ressaca”. Há, porém, enredo em alguns deles, como em “Pista”. Interrompi-a: Podemos dedicar um minuto à linguagem? A estudante concordou. Tenho aprendido muito com o senhor. Fiz uma pergunta envolvente: É possível, em mininarrativas, o escritor se afastar da linguagem comum ou coloquial e se esmerar na frase, sem ser pedante? Sim, porém não é o caso de Gorj, que usa a linguagem mais trivial possível, cheia de lugares-comuns: “O sol se espreguiçava na linha do horizonte”. Admoestei-a: Não seja cruel, como Anita.

Fortaleza, 20 de março de 2012.

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