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domingo, 4 de março de 2012

A pungência do real (Henrique Marques-Samyn)




No prefácio a Intramuros, cuja primeira edição foi publicada em 1998, Fausto Cunha reconhece na obra um livro de maturidade, em que se equilibram duas linhas presentes desde sempre na poesia de Astrid Cabral, já anteriormente rastreadas por Lélia Coelho Frota: “a fenomenologia do mundo real e o conhecimento dos arquétipos”. Com efeito, a partir da síntese dessas duas modalidades cognitivas, Astrid Cabral foi capaz de elaborar uma poética inconfundível, cuja postura perante o mundo sempre opera conciliando a intuição e a sensibilidade; quando a isso se soma a elevadíssima qualidade formal de sua poesia, torna-se facilmente compreensível o lugar de destaque por ela já assegurado entre os grandes nomes da poesia brasileira.
Ao publicar esta segunda edição de Intramuros, a manauara editora Valer devolve à nossa literatura um dos momentos culminantes da trajetória de Astrid Cabral, ademais acrescido de vinte e cinco poemas inéditos que, não obstante, se adequam perfeitamente ao espírito da obra. E que espírito é esse? Podemos sintetizá-lo evocando o título de um dos poemas que o compõem: trata-se de uma “reordenação do mundo”. Se o texto assim intitulado tematiza as traças − “raça cúmplice da ruína”, que rendilha papéis e faz pó de poemas; “raça cúmplice da vida”, que reconduz “páginas / às folhas primárias” −, talvez seja possível afirmar que Intramuros tematiza a nós, viventes e existentes, que segundo nosso modo de estar no mundo rearranjamos o que nos cerca, deixando por toda parte nossas nem sempre indeléveis marcas.

Sobre xícaras e amendoeiras, cães bifrontes e cavalos-marinhos, cenas e paisagens versam os poemas de Intramuros; por meio deles, Astrid Cabral registra o real em seus múltiplos instantes, fazendo do efêmero a matéria estética. Conquanto se trate de um livro de patente regularidade, merecem destaque os poemas de "Roma sob pólen", valioso acréscimo a esta segunda edição. Composto por vinte peças de variada fatura, "Roma sob pólen" atualiza a proposta central do volume encerrando uma longa meditação sobre o tempo e a História, a natureza e os feitos humanos, o que inevitavelmente evidencia a transitoriedade do que somos e do que erigimos: “No antigo mercado / nem mercadorias / nem mercadores. // Palco e plateia às moscas / no anfiteatro abandonado / à persistência das folhas. // Casas sem portas e tetos / abrigam por moradores / ninhos de inseto e poeira.”

O que sobre muitos é impropriamente dito, no caso de Astrid Cabral é uma verdade incontestável: trata-se de uma poetisa que, mais que escrever poesia, logra vivê-la a cada instante. Ao registrar suas impressões, Astrid nos fornece os relances de um mundo impregnado pelo lirismo − por vezes libertador, por vezes doloroso; mas, invariavelmente, dotado de uma pungência imarcescível.


(Clave Crítica, semanário de ensaística e crítica literária: http://clavecritica.wordpress.com)

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