Os filmes Amores de Apache (Casque d’Or, 1952), As Aventuras de Arsène Lupin (Les Aventures d’Arsène Lupin, 1956) e Os Amantes de Montparnasse (Montparnasse 19, 1958), de Jacques Becker (1906-1960), não obstante as qualidades, principalmente do último, não estão entre os melhores que realizou. O segundo deles certamente inclui-se entre os piores.
Na verdade, simples filme de aventura que não passa de derivativo inconsequente, singela ilustração animada do livro de Maurice Leblanc, que, por sua vez, constitui mero passatempo e leve fantasia.
O filme é feérico, luxuoso, alegre e luminoso, exceto nas passagens indispensáveis à ação sorrateira do célebre larápio, quando, por exemplo, mergulha ostentoso baile na escuridão.
As peripécias da personagem transcorrem convencional e linearmente narradas numa sucessão de golpes de audácia e inteligência, dois ingredientes que se conjugam como fundamentos e causas de seus êxitos, alguns rocambolescos, como o realizado na Corte do Kaiser.
Todavia, destoa de sua atilada perspicácia o diálogo com a manicure que o atendeu como Lupin na barbearia que frequentava como cidadão, a não ser que um dos componentes de sua personalidade, não antevisto nesse filme, seja correr riscos inúteis.
De todo modo, como filme ou como qualquer outra coisa (mais isso - ou só isso - do que aquilo), é mero produto industrial descartável.
Já Amores de Apache perfaz drama que desde o início entremostra sua tragicidade, para a qual tão rápida e diretamente quanto possível direciona-se a ação das personagens.
Contudo, ao contrário de Arsène Lupin, é filme consistente, no qual o relacionamento das personagens apresenta-se tão pesado quanto esteios de concreto, podendo-se cortar à faca a atmosfera que o circunda, como, parece, alguém já afirmou em outra circunstância.
Ao amor dos protagonistas antepõem-se obstáculos tão cruciais que se assemelham ao invocado destino dos trágicos gregos, do qual não se pode fugir.
Assim, à beleza de amor puro e espontâneo opõe-se o ácido que o corrói.
No entanto, Amores de Apache, não obstante contenha ambientes bem estruturados e articulados, não atinge o nível artístico por força do convencionalismo e do mimetismo que o caracterizam.
Se Arsène Lupin é aventuroso, Amores de Apache dramático, Os Amantes de Montparnasse é trágico. Não, porém, tomado de grandes lances e, por isso, facilmente caracterizável. Ao revés, sua tragicidade é o próprio existir e sentir do protagonista, o pintor Modigliani, dominado por permanente insatisfação pela falta de receptividade à sua obra.
Sua fragilidade emocional, tão acentuada quanto seu talento pictórico, impede-o de perceber que a arte, pelo menos por enquanto e ainda por muito tempo, é apanágio, na produção e na fruição, apenas de uns poucos numa sociedade calcada na luta material pela sobrevivência em sistema competitivo, de exploração do homem pelo homem, de concentração de riqueza e outros males correlatos ou derivados.
Por isso, a indiferença, a incompreensão e a não aceitação de sua obra o feriam profundamente, desorganizando-o psiquicamente, o que era agravado pelo alcoolismo e a carência alimentar.
No filme, pelo menos duas dessas manifestações o golpeiam. Na sequência inicial, ao desenhar a fisionomia de um freguês do bar, que se dispõe a pagar pelo trabalho, conforme combinado, mas o repudia, devolvendo-o ao autor e, ao final, num dos bares-cafés parisienses que se estendem às calçadas, ao oferecer aos fregueses de mesa em mesa seus desenhos, o pior não são as unânimes recusas de comprá-los, mas, a mulher que lhe paga o preço e não o quer porque não sabe o que fazer com aquilo.
Surpreende, pois, num artista do porte de Modigliani essas excessivas suscetibilidade e necessidade de aceitação e incentivo, mormente quando demonstra, para um daqueles milionários estadunidenses pobres de espíritos (qual não é?), conhecimentos sobre Van Gogh, que, não obstante genial, vendeu em vida, segundo consta (dizem que não é fato), apenas um quadro.
Do ponto de vista cinematográfico, é, sem dúvida, o melhor desses três filmes, o único, entre eles, que atinge contextura artística, mesmo estando submetido ao convencionalismo narrativo dos mais acadêmicos, moldado, porém, a deixar destilar, gota a gota, todo o fel existencial do protagonista, apenas suspenso nos momentos em que exercita, como poucos o fizeram, seu talento criador ou, finalmente, encontra o amor. Que, ambos, no entanto, não lhe bastam para estancar a ansiedade e a inadaptação que o dominam e liquidam.
Becker apreende e constrói cinematograficamente esse angustioso calvário com adequada direção dos atores, que (Gérard Philipe sobretudo) correspondem e preenchem as necessidades interpretativas de seus papéis, para conjuntamente realizarem triste filme sobre triste vida, sangrada até a última gota para outorgar sua essência à humanidade num de seus momentos artísticos mais luminosos, como a rês sangra no matadouro para entregar ao ser humano, primeiro, sua existência, depois, sua carne.
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(do livro O Filme Dramático Europeu, editado pelo Instituto Triangulino de Cultura em 2010-www.institutotriangulino.wordpress.com)
*Guido Bilharinho é advogado atuante em Uberaba, foi candidato ao Senado Federal e editor da revista internacional de poesia Dimensão, sendo autor de livros de literatura, cinema e história regional.
(Publicação autorizada pelo autor)
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