I
/////
Usar a ficção para reconstituir a realidade com outras palavras e outros nomes – até para não ferir suscetibilidades – é o desafio que muitos escritores têm imposto a si mesmos – mas nem sempre todos se saem bem, o que é natural, pois tudo depende do talento de cada um. Não é o caso do autor deste livro, Alaor Barbosa. Romancista, contista e estudioso da literatura brasileira, Barbosa escreveu Vasto Mundo, volumoso romance de 704 páginas, como uma forma de procurar entender a trajetória de sua própria vida, a partir da transfiguração da realidade. E se saiu muito bem.
Se provavelmente não conseguiu explicá-la ou justificá-la para si mesmo – até porque esta é uma tarefa impossível, reservada apenas aos deuses, se é que estes ainda existem –, pelo menos deixa-nos um legado de um Brasil que, mal ou bem, existiu até 1964 e que foi destruído – com a interrupção do destino que havia sido traçado para muitas vidas – em nome de ideais que, hoje, vistos à distância de quase meio século, não valiam a pena ser defendidos.
Nem do lado daqueles que exercitaram os piores sentimentos da espécie humana, torturando, mutilando e matando seus semelhantes, nem daqueles que lutaram por uma quimera, a de um mundo mais justo e mais bem dividido, que, no fundo, não passaria de um regime em que uns poucos mandariam muito (e igualmente viveriam bem) e muitos viveriam numa habitação coletiva ou, se tivessem sorte e amigos influentes, num apartamento de um pardieiro subsidiado pelo Estado.
Hoje, depois de tanto sofrimento e desilusão, conclui-se que nada daquilo valia a pena. Até porque muitos dos perseguidos daqueles tempos, em meio aos aproveitadores de plantão e aos oportunistas de todas as ocasiões, continuam ainda por aí a meter os pés pelas mãos, como a mostrar que, do outro lado, também não havia santos. E que, se tivessem vencido a tal “guerra suja”, também não nos teriam dado um mundo melhor. Até porque não se sabe o que essa gente seria capaz de fazer se também tivesse tido nas mãos um poder sem limites. Essa é a tragédia do nosso tempo que nunca haveremos de entender, ainda que venhamos a escrever romances ou tratados de mil páginas.
II
Com título inspirado em conhecido poema de Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), este romance é autobiográfico, baseado fundamentalmente na vida do próprio autor e sua família. Rafael Noronha, o jovem incompreendido e idealista – que, pelo sonho de se tornar um literato reconhecido nacional e até mundialmente, decide cedo deixar sua cidade natal para tentar conquistar uma posição no Rio de Janeiro, então Meca de todo literato brasileiro – é um alter ego explícito, e Imbaúbas, inspirada na Morrinhos natal do autor, surge como um lugar mítico, tal como o Condado de Yoknapatawpha, a cidade imaginária de William Faulkner (1897-1962), ou a Macondo, de Gabriel García Márquez (1927), ou ainda a Santa María, de Juan Carlos Onetti (1909-1994).
A partir daí, reconstrói a história do Brasil de 1956, no começo do governo do governo de Juscelino Kubitschek, até três ou quatro meses depois do golpe militar de 1º de abril de 1964, que tanto infelicitou a Nação. É nesse período que o jovem Rafael Noronha trata de deixar a cidade mítica e a proteção da família para tentar um lugar no Rio de Janeiro e lutar por um emprego, ao mesmo tempo em que procura se infiltrar na sociedade cultural da época, aproximando-se de jornalistas e escritores que faziam o suplemento cultural do Diário da Guanabara, obviamente um disfarce do verdadeiro e hoje extinto Jornal do Brasil.
Ao viver no Rio de Janeiro, acompanha todos os fatos marcantes daqueles anos, inclusive, a visita de Fidel Castro ao Rio de Janeiro, a 6 de maio de 1959. Àquele tempo, cinco meses depois de ter chegado ao poder em Cuba, o jovem comandante ainda não havia aderido ao marxismo-leninismo, o que faria só um ano depois, e carregava a aura de rebelde romântico que havia mandado para el paredón los grandes ladrones de dinero público.
Outros nomes daquele tempo aparecem, muitos disfarçados aqui e ali, embora não seja difícil ao leitor habituado com a época e o Rio de Janeiro dos anos 50 decifrá-los, o que faz deste um roman à clef, tal como Ilusões Perdidas, de Honoré de Balzac (1799-1850), que, aliás, é citado no livro e é também ambientado numa redação de jornal. Sem contar que seu protagonista é igualmente um jovem interiorano, talentoso e cheio de ilusões e ambições sobre a vida, que sonha com o brilho do mundo das letras, assim como o Artur Corvelo de A Capital, de Eça de Queiroz (1845-1900).
É este igualmente um romance de aprendizagem ou formação, um bildungsroman, pois expõe de forma pormenorizada o processo de desenvolvimento físico, moral, psicológico, estético, social ou político de uma personagem, desde a sua infância ou adolescência até um estado de maior maturidade. Essa maturidade chega com a noite em que os generais derrubaram o poder constituído e impuseram ao país o poder das botas, títeres que eram manobrados pelos idealizadores da chamada Guerra Fria (1945-1991). Não que aquele fosse um regime exemplar, mas o que veio depois passou da conta em termos de violação dos direitos civis e humanos.
Depois de trabalhar algum tempo num grande diário do Rio de Janeiro, o jovem Rafael, talvez por falta de outra oportunidade profissional, acaba fazendo parte da redação de um jornal esquerdista, ligado ao Partido Comunista Brasileiro, ainda que discordasse dos comunistas ortodoxos e fizesse questão de preservar sua independência intelectual. Obviamente, ameaçado de prisão e até de morte sumária, prefere deixar o Rio de Janeiro em direção a Belo Horizonte, rumo ao esquecimento, pensando se esconder em seu burgo natal, longe dos olhos dos novos donos do poder e amparado pelas amizades da província. E, assim, reconstituir a vida, seguindo outros caminhos.
III
Nascido em 1940 em Morrinhos, cidade localizada na região Sul de Goiás, que ainda preserva parte de seu casario colonial, Alaor Barbosa fez lá seus estudos primários e o antigo curso ginasial. Começou o curso clássico em Goiânia e o concluiu no Rio de Janeiro. Fez o curso de Direito em Petrópolis, de 1961 a 1963, mas o terminou em Goiânia, em 1966. Antes de concluir o curso, já advogava como solicitador-acadêmico. Em 1984, já maduro na idade, passou em concurso público para procurador autárquico federal do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), em Brasília. Em seguida, tornou-se consultor legislativo do Senado Federal, cargo em que se aposentou em 1993. É mestre em Literatura pela Universidade de Brasília (UnB).
Ainda adolescente, foi jornalista, tendo começado num pequeno jornal semanal de Morrinhos, sem receber salário. Em seguida, colaborou intensamente com jornais de Goiânia, apenas pelo prazer de ver suas ideias em letra de forma. Dos 19 aos 24 anos, foi jornalista profissional no Rio de Janeiro, tendo trabalhado no extinto Jornal do Brasil. No Rio de Janeiro, escreveu textos para o Suplemento Dominical do Jornal do Brasil, porta-voz das vanguardas da época, os movimentos concretista e neoconcretista, e para o suplemento literário do extinto Tribuna da Imprensa.
Na literatura, estreou-se bem cedo, em 1964, com o livro de contos Cidade do tempo. Ainda em 1964, publicou A espantosa realidade, em edição de autor, também livro de contos que teve segunda edição em 1995 pela Editora da Universidade Federal de Goiânia. Antes disso, já havia publicado contos em jornais cariocas, alguns dos quais reunidos em Picumãs (Goiânia: Brasil Central, 1966; Rio de Janeiro: Rio Fundo, 1996, 2ª ed.). No gênero contos, publicou Gente de Imbaúbas (Goiânia: Oriente, 1971), Os rios da coragem (Goiânia: Imery, 1983) e Contos e novelas reunidos (Brasília, Projecto Editorial, 2006).
IV
Além de ensaios sobre a obra de Monteiro Lobato e Guimarães Rosa, publicou os romances A morte de Cornélio Tabajara (Goiânia: Fundação Cultural Pedro Ludovico Teixeira, 1997), que obteve o Prêmio Cora Coralina de 1997, Memórias do nego-dado Bertolino d´Abadia (Goiânia: AB, 1999), Uma lenda (Brasília: LGE, 2004) e Eu, Peter Porfírio, o maioral (Lisboa: Dom Quixote, 2009), que recebeu menção especial no Prêmio Leya de Literatura, de Portugal. Esta, porém, não é uma lista completa das obras do autor, que, incluindo livros de literatura infantil, chegam a duas dúzias.
Com Sinfonia Minas Gerais: introdução à vida e à literatura de João Guimarães Rosa, de 2008, teve contra si a incompreensão da filha do escritor, Vilma Guimarães Rosa, que entrou com processo na Justiça para impedir sua distribuição sob a alegação de que seu livro Relembramentos: João Guimarães Rosa, meu pai (Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983) havia sido plagiado. Não houve plágio nenhum, como concluiu a perita do Juízo Carolina Mori Ferreira, indicada para cuidar do caso.
Ao negar a existência de plágio, a perita afirmou: “Os fragmentos de textos reproduzidos na obra de Alaor Barbosa, tanto os de Vilma Guimarães Rosa quanto os de outros autores, são, todos eles, identificados, isto é, são referenciadas a autoria e a fonte, de modo nenhum possibilitando a que se pense tratar-se de textos de autoria da ré do processo”. Para a perita, pelo contrário, “pode-se dizer até que uma estimula a leitura da outra, para quem é desejoso de conhecer a vida e a obra de João Guimarães Rosa”.
______________________
VASTO MUNDO, de Alaor Barbosa. Brasília: Annabel Lee Projecto Editorial, 708 págs., R$ 80,00, 2001. E-mail: annabel@gmail.com Site: projectoeditorial.com.br
________________________
(*) Adelto Gonçalves é doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002) e Bocage – o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003). E-mail: marilizadelto@uol.com.br
/////