Seis mulheres e um homem se encontraram em Fortaleza, uma das metrópoles do Brasil. Ele vem de Limoeiro do Norte, microrregião do Baixo Jaguaribe, Ceará. Tem alguns livros editados e andou (e anda) pelo mundo, a semear metáforas. Elas são mais jovens, mas tão viajadas quanto o criador de Panaplo, e se iniciam nas letras. O resultado desse encontro se intitula Metropolis (Fortaleza: La Barca, 2012), premiado por edital da Secretaria de Cultura de Fortaleza em 2010. A organização da coletânea é de Mariana Marques.
O impresso se compõe de 21 escritos. No prefácio (“Trípticos da cidade”), Miguel Leocádio Araújo explica mais: “Sete escritores, em 21 narrativas, mergulham numa jornada que atravessa tempo, espaço, forma e linguagem. A ideia de reunir possibilidades de representação por meio da narrativa assemelha-se à própria imagem da cidade como lugar da diferença e da afinidade, para além da simples captação do real”. O volume está dividido em três partes: “A cidade: manhã”, “A cidade: tarde” e “A cidade: noite”. Cada parte é composta de uma peça literária de cada um dos sete ficcionistas. O prefaciador, ao final da análise, traça perfil resumido dos contistas: “No dizer mínimo das lacunas expressivas de Anna Karine Lima, no amálgama de gêneros e focos narrativos de Flávia Oliveira, na prosa-poesia da urgência solar e da delicadeza de Fernanda Meireles, nos entrelaçamentos de tempo e de registros e de pessoas narrativas de Joice Nunes, na surpresa das imagens dos deslocamentos de Natércia Pontes, na associação entre narratividade e dimensão gráfica portadora de sentidos de Jorge Pieiro, na poesia-prosa da vastidão de mares, nuvens e noites de Mariana Marques”.
Ana Karine Lima se apresenta com “Fortaleza aflora”, “O tempo está” e “Quinta capital”. Talvez a mais contida das seis: “dizer mínimo das lacunas expressivas”. A cidade é Fortaleza “às seis e meia da manhã”. Talvez um poema (modernista) curto ou marginal, anos 70. Nada de maiúsculas, frases longas, enredo de novela, personagens bem delineados. O modelo se repete na segunda obra, embora nesta haja alguma narração. Apenas o cotidiano (sintético) de personagens sem nome explícito. Na terceira, duas cenas: numa, o narrador (não fica claro se homem ou mulher) a esperar entregador de pizza; noutra, suas ruminações. Dentre elas, a decisão de guardar “as duas últimas fatias para que seu café da manhã seja de rei”. O pronome possessivo “seu” indica a existência de outro, o “rei”. E nada mais. O leitor que se anime a imaginar o jantar, a noite, os sonhos, o despertar, a manhã na quinta capital do país.
A participação de Fernanda Meireles se dá com “Tchau”, “Ordens = instruções da brincadeira” e “17 luas”. Na primeira, a narradora (?) se refere a um sujeito que “escrevia poesia em bloquinhos”. São lembranças recentes de um amor: “Eu ria muito de você”. Só isso. E isso é um enredo. Na segunda composição, o narrador é claramente masculino: “Obedeci e estava achando muito divertido obedecer e estar descalço”. Alude a outra pessoa: “Estávamos molhados da chuva”. Narra os encontros furtivos com ela: “Tinha jardim na casa dela”. Trata-se de confissão ou exposição de pequenas ações e atitudes (“a prosa-poesia da urgência solar e da delicadeza”): o enredo. A terceira tem mais aparência de conto tradicional: diálogos com travessões e pouca narração. Tem urdidura, embora tolinha (amor de adolescente).
De Flávia Oliveira são “A estória do passarinho”, “Carta náutica extraviada ou o navio que nunca chegou na sua caixa de entrada” e “GRU - FOR”. Comparada com Anna Karine, tem muito fôlego. Como as duas primeiras contistas, também se dedica a um realismo urbano bem comportado, sem cenas de violência e sexo explícito. A fábula da ave está na primeira pessoa, mas o protagonista parece ser um passarinho (humanizado): “fui atropelada por um passarinho” (que) “me convidou pra tomar um chopp”; “escrevi uma carta pra ele”, etc. É tudo metafórico: “a fuga da gaiola” (“decidimos fugir. Ele iria voando e eu de ônibus”). A divisão da alegoria em capítulos é agradável ao leitor (pratiquei isso nos primeiros voos, lá pelos anos 80). Na segunda não há enredo, embora haja história: “Era o ano da graça de 1889”, “Fortaleza é uma cidade de naufrágios”. Flávia é muito imaginativa. A terceira é uma carta de amor de uma mulher “com nome comum”. Lembra de novo a capital cearense. E um amor muito danado. Não do tamanho daquele do passarinho.
Mostra-se Joice Nunes com “Amapô não sobrevive às manhãs”, “Como quem decompõe uma elegia com a tarde atravessada na garganta” e “Moonlight Sonata”. Na primeira peça quase não há trama. Seria uma descrição (“entrelaçamento de tempos”): a chegada do personagem a um bar, o meio-dia, o epílogo melancólico. A segunda obra é também longa (para os parâmetros desta publicação): com frases espichadas, a ficcionista consegue amoldar o enredo a um bilhete curto escrito pelo narrador e jogado ao lixo. No mais curto dos três relatos (talvez apenas uma divagação), Joice alcança outros ambientes urbanos: “a noite pode acabar nos domínios subterrâneos dos motéis de quinta”.
De Jorge Pieiro direi pouco (já o tenho muito presente em meus escritos). Os três títulos são parte do jogo de palavras que ele faz nos chamados contemas (conto com jeito de poema): “A cidade, a sombra”, “A cidade à sombra” e “A cidade, a sobra”. No primeiro, o narrador-personagem (Manuelito), “antes de suspirar, os braços em cruz”, se mostra num escrito (transcrito). No segundo, o mesmo personagem, em lembranças de “outra tarde”: a primeira queda. Não direi obra-prima, para não deixar Pieiro muito vaidoso. No terceiro, o mesmo Manuelito se questiona como escritor: “Já era tempo de concluir seu romance”. E, mais uma vez, narração em terceira pessoa seguida de escrito do protagonista: “quero ser este poema suicida”. E nada mais direi deste criador de mundos (Panaplos) e seres estanhos.
Mariana Marques comparece com “Aterro”, “O que precisa ser alcançado: uma tarde livre em dia útil” e “O que ninguém precisa saber: que o escuro ainda não foi superado”. No primeiro, a narradora, diante do mar, como num sonho. Suas sensações. Apenas isso. “Estava sempre sentada na mesma pedra”. Os outros, de títulos longos como rios, seguem o mesmo ritmo de devaneio. Num aparece um ser, que pode se tratar de uma gata: “Sara” (...) “vem se enroscar em mim”. Não há um episódio. O espaço, o de um apartamento em reforma. O outro é curtinho (três linhas), quase do tamanho do título: uma só frase enigmática. O leitor se sente hipnotizado, como se diante de um quadro abstrato, doido para entender os traços, as cores. Depois decide: não, não preciso entender nada. E sai, de mansinho, pelos meandros da galeria.
Encerra-se a obra com Natércia Pontes: “Peixes”, “Dinossauro” e “Gatinho, psi, psi”. No primeiro, ela se estende ou não se contém. E faz menção a Fortaleza, em diversos trechos. Um casal a comprar peixes no Mucuripe. Devem ser homem e mulher com casa ou apartamento, dois ou três filhos, classe média, etc. Não, nada disso. Waléria e Carlos “mal se conheceram em um bar na Praia de Iracema”. A narração é menos real do que se possa imaginar. É feita mais de conjecturas do que de atos e atitudes reais: “Com os rostos amassados, se despedirão tímidos e cansados e incertos de como será o resto do dia”. O segundo conto (pode-se chamar assim, sem medo de gerar discussão) tem como cenário o Rio de Janeiro. O protagonista se chama Dinossauro, ex-apresentador de programa infantil na tevê. Tem 48 anos de idade, está decadente, sem emprego. Boa composição. O terceiro se passa em São Paulo. Os personagens são dois: a narradora e Fabrício. Dela pouco se sabe. Dele, muito, na visão dela: “suas ganas de fumar cigarro”. Um pedaço de enredo: “O gato veio e cheirou sua mão de unhas sujas”. É o epílogo da solidão. Natércia sabe narrar.
Cômputo geral: bom livro, sem preciosidades literárias, jovens mulheres (meninas, como se diz) a lidar com a palavra escrita, a arte de contar. E um ex-jovem a lhes dar exemplo: não tenham medo de abrir o bico, passarinhas da manhã, da tarde e da noite.
Fortaleza, 5 de maio de 2012.
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