Tive intenção de resenhar cada publicação recebida e lida neste primeiro semestre de 2012 (como tenho dito, não compro mais livros, por absoluta falta de tempo: passo oito horas por dia, em média, a ler os que me mandam, além de poemas, contos, crônicas, artigos, ensaios enviados por correio eletrônico). Não pude, entretanto, seguir à risca o meu intento, pois também não tenho mais tempo para escrever (um rascunho para tragédia em janeiro; uns apontamentos para alegoria em julho; um artigo aqui, outro ali). Sendo assim, hoje tirei um tempinho para dar notícia de seis volumes chegados recentemente. Que me desculpem os cavalheiros Pedro Du Bois, Claudio Parreira, Franklin Jorge e Jorge Pieiro, sempre amigos; e as damas Cissa de Oliveira e Hilda Mendonça, eternamente amadas. Sou-lhes muito grato pelas horas de prazer proporcionadas por seus escritos.
PEDRO DU BOIS
Do gaúcho Pedro Du Bois é Brevidades (Passo Fundo: Projeto Passo Fundo, 2012). São poemas, apresentados em cinco blocos: “Breve apanhado sobre a (minha) lucidez”, “Breve anotação sobre a (minha) sanidade”, “Breve apontamento sobre o (meu) equilíbrio”, “Breve relato sobre a (minha) natureza” e “Breve ilustração sobre o (meu) sentimento”. A primeira aba é assinada pelo poeta, historiador e crítico literário Paulo Monteiro. Nela se lê este dito para lá de espirituoso: “Pedro Du Bois é a Esfinge. Esfinge de carne e osso, mas esfinge. Publicou quase quarenta livros de poemas. Humanamente falando, uma aberração. Vai contra a natureza das coisas”. A seguir (para explicar a prolificidade do poeta), nega, uma a uma, as causas dela: escrita automática, surrealismo, decadentismo temático, penumbrismo. E arremata: “Na verdade, a obra poética de Pedro Du Bois mais do que reunir influências, reúne sensações. Daí é que foge a nossa tradição cartesiana de classificar tudo”.
Jorge Tufic, esse outro grande poeta brasileiro, na apresentação (“Brevidades e a chave do labirinto”), acende mais uma luz: “Não é, pois, a meu ver, uma poesia que se expõe ao arreganho dos críticos, muito menos à inútil tentativa de analisá-la, como se faz a um texto comum, parecido com tantos outros. É poesia para ser lida e pensada, se possível tomando por exemplo o método do autor: “onde me valem horas de palavras”.
Não ouso dar opinião, sobretudo depois das especulações feitas pelos dois poetas. Ouso, sim, copiar o início do primeiro poema deste Brevidades: “Permito-me a lucidez: vejo a árvore e os frutos; / desfaço a cama e guardo as cobertas. Visto na roupa / a imagem trazida no regresso” (...). É arte poética. Pelas imagens, pelo ritmo, pela disposição das palavras, pelo sentido delas.
CLAUDIO PARREIRA
Gabriel (São Paulo: Draco, 2011) é a primeira viagem do paulista Claudio Parreira, em nave por ele tripulada, ao estranho mundo da literatura. E pousa suavemente, abraçado a um pergaminho de 270 páginas, dividido em 93 capítulos sem título. O protagonista é um anjo, como se pode supor pelo nome. “Mandado novamente à Terra pelo Supremo, com mais uma incumbência”, Gabriel chega a “uma cidade sombria e em constante mutação”. E se une, por amizade, a uns humanos nada angélicos: um ex-poeta bêbado e filosófico, uma mocinha nada virtuosa e outros seres de menor importância no enredo.
O romance se inicia com a visita do anjo Gabriel ao escritório do Supremo (que jogava cartas com alguns parceiros). Dialogam, como fazemos os mortais. O chefe fuma um charuto. Falam das novidades e do passado (a experiência de mandar um filho à Terra, o menino Jesus), até que o mandachuva revela o ousado projeto de levar o céu ao mundo. A partir do segundo capítulo, o espaço da ação deixa de ser o céu, substituído pelo nosso planeta. E então surgem os demais personagens: a puta Maria; dona Linda (proprietária do negócio, isto é, do prostíbulo), o anjo Gabriel, Aldo, padre Gerôncio, Embaixador, etc.
A linguagem do narrador é a mais coloquial possível. As falas dos personagens são repletas de gíria. Até Deus (o Supremo) fala como qualquer humano: “quem manda nessa porra sou eu!”.
Não sei se deva fazer comparações ou buscar noutras leituras o motivo de minha surpresa diante desta composição que foge aos padrões da atual prosa de ficção brasileira. Posso, no entanto, me lembrar de As sandálias do pescador, do australiano Morris West (cujas obras fizeram sucesso no Brasil, nos anos 1960) e do filme Je vous salue, Marie, de Jean-Luc Godard. Estarei exagerando ou delirando?
FRANKLIN JORGE
De Natal veio O ouro de Goiás (Goiânia: Kelps, 2012)), de Franklin Jorge. São 26 crônicas, cada uma delas dedicada a uma personalidade da cultura goiana. O autor, potiguar, nascido no Vale do Ceará-Mirim, tem se dedicado, há quase meio século, ao jornalismo e à literatura. A maioria de seus escritos, porém, continua inédita. São cerca de 40. Este O ouro de Goiás tem sua origem revelada pelo poeta Ubirajara Galli: “No final da década de 1970, o jornalista-escritor Franklin Jorge, portando a sua bateia cultural, desembarcou em Goiânia e começou a lavrar as áureas águas da cultura goiana. Da sua colheita, nada se perdeu. Todas as suas impressões, experiências vividas, bem-materializadas deram vida a essa publicação” (...).
As peças de Franklin são saborosas. A primeira delas tem como protagonista Carmo Bernardes. Conta um passeio pela Alameda do Bosque dos Buritis. Não exatamente o passeio, mas a fala do velho cultor de letras (“uma força invisível e misteriosa me aproxima desse homem que bem poderia ser o meu pai ou mesmo meu avô”).
Desfilam pelas páginas da coleção seres humanos excepcionais: Cora Coralina, Bernardo Élis (“gosta de gatos e de jardinagem”), José Godoy Garcia, Antonio José de Moura, José Décio Filho, Brasigóis Felício, José Mendonça Teles e mais alguns escritores, além de artistas e humanistas de outras águas, como Antonio Poteiro (“capta as pulsações misteriosas da terra em quadros e cerâmicas”).
Com O ouro de Goiás, Franklin Jorge prova que se pode pintar o povo de um lugar (ou a sua essência), mesmo que se venha de fora, de longe ou de outras terras.
JORGE PIEIRO
No dia 14 de abril passado estive com meu conterrâneo Jorge Pieiro, no Centro Cultural do Banco do Nordeste, centro de Fortaleza. Abracei-o, fiz-lhe uns elogios e ele me ofereceu um exemplar de O outro dono do fim do mundo (Fortaleza: Conhecimento Editora, 2012). Há um subtítulo: coletânea de contos, narrativas & ficções. A capa é de Geraldo Jesuíno: o mundo em decomposição, vermelho de luz ou sangue, espatifando-se na escuridão do cosmo, feito um meteoro que se consome. Nas abas, nada. Na contracapa, Pieiro pela metade e uma informação valiosíssima: “O outro dono do fim do mundo reúne 25 narrativas curtas, microcontos ou, simplesmente, textos ficcionais. Esta coletânea de “contemas” – como o autor prefere denominar – encerra mistérios, estranhamentos e delírios; apresenta segredos de linguagem e, ainda, narrativas tradicionais de enredos lineares. A obra busca, a todo custo, expandir os sentidos e a imaginação do leitor, levando-o a descobrir outras formas de perceber o mundo”.
Fortaleza está aqui e ali. Em “A última sessão” aparece o Cine São Luiz. Em “A execução” é a vez do Theatro José de Alencar. Em “Luances” um personagem vai ao Parque do Cocó. Talvez só isso. Pieiro, porém, não é nem um pouco preocupado com paisagens e monumentos. Prefere as pessoas, estejam em Fortaleza, em Panaplo (que ele inventou), em qualquer cidade sem nome revelado. Como a personagem de “O sábio”: “No meio da rua: a gorda mulher abriu os braços. Ergueu as toras de carne flácida para os edifícios”. Querem mais? Pois leiam, de cabo a rabo, O outro dono do fim do mundo.
Salvo engano, algumas das peças aqui reunidas constam de outras coleções de Jorge. Como a que abre este volume, a clássica “Meu tio e eu”. Não faz mal, pois o que abunda não prejudica. E aqui, pelo contrário, tanto abunda como enriquece, comove, ensina, entrete, etc.
CISSA DE OLIVEIRA
Da terra do compositor Carlos Gomes chegou Intrincada leveza (Campinas: Editora Multifoco, 2012), de Cissa de Oliveira, nome literário da bióloga e doutora em genética Maria Sileuda Moreira de Oliveira, cearense radicada naquela cidade. A mostra do conjunto coube a mim. Fi-la (ou escrevi-a) com muito gosto. Eis alguns trechos:
“O primeiro impacto senti ao ler “Seria amor?” Essa crônica, quase conto, pega o leitor pelo pé, fisga-o bem direitinho e o conduz, no samburá, feito peixe, a um cafundó qualquer, a uma noite escura, a um mistério da alma. Terá Cissa pretendido, algum dia, escrever um romance de costumes, do sertão, com os Fulô na flor-da-idade e na velhice, na saúde e na doença, na vida e na morte?
Também “Mulher malabarista” mexeu comigo. Croniquinha gostosa. Só faltou ser mais crescidinha. Cissa tem boa imaginação e sabe lidar com as imagens. Igualmente bela é “Bom mesmo é o amor, e as saladas”. Ou será conto? Gosto desse tipo de narração, envolvente, criativa, ao sabor da pena.
Cissa é poeta. Se não fosse, não conseguiria escrever isto: “Como se cada minuto fosse um copo, bebeu todos eles, menos um ou dois, verdade seja dita, por conterem coisas menores – raiva e similares – sabe como é, veneno pra matar o outro é coisa que somente os tolos bebem”. Lido “Dois parágrafos” (que poder de síntese!), pensei: Assim se elabora um conto, com esmero nos pontos-de-vista, no ambiente e na linguagem”.
HILDA MENDONÇA
Encerro esta crônica com duas palavras a respeito de A grande virada (São Paulo: Scortecci, 2011), de Hilda Mendonça, mineira que adotou Brasília como pátria. Volume de 190 páginas, dividido em 45 capítulos. No prefácio, Dimas Ferreira Lopes traça um perfil da filha de Alpinópolis e analisa minuciosamente a peça: “Trata-se de texto bem arranjado a partir da imemorial idéia da mulher virtuosa” (...). “A autora propõe Paula, personagem central, como modelo de mulher virtuosa, avaliada, evidentemente, não pelos valores culturais e principiologias morais vigentes no tempo histórico do ano mil antes de Cristo”.
A ficção de Hilda tem como narrador uma personagem. Como se fosse epígrafe, duas frases em itálico a iniciam: “Entre tombos e sustos e tropeços aqui cheguei. Decidir nesta encruzilhada é coisa difícil, bem sei!” O primeiro ser fictício a surgir na fala da protagonista é Mãe Dois. Seguem-se dona Feliciana, Dilurdes, doutor Jorge, seu Antônio, Silvana, etc. É um desfiar lento de acontecimentos de cidade pequena.
Segundo o prefaciador, “a narrativa está expandida em estilo natural, embora colorido pelas muitas adjetivações postas às pessoas, cenários e geografia” (...). Mais adiante observa: “Há muita sonoridade nas palavras utilizadas no texto”. E tira uma conclusão: o romance está “na zona da prosa poética”. Não vi poesia na história de Hilda Mendonça. Vi, sim, muita memória.
CONCLUSÃO
Exaurido de prazer, retorno aos delírios e aos sonhos. E, mais uma vez, mando ósculos em expansão para meus amigos Pedro Du Bois, Claudio Parreira, Franklin Jorge, Jorge Pieiro, Cissa de Oliveira e Hilda Mendonça. E repito: Sou-lhes muito grato pelas horas de deleite quase sexual que me proporcionaram seus livros. Se não alcancei o nirvana, culpem a idade, que anda avançada. Ou avençada (no sentido de harmonizada) com a disciplina ascética e a meditação.
Fortaleza, 8 de junho de 2012.
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