(Gravura de Gustave Doré)
Ainda é a primeira e multiplicou-se,
Ainda é a primeira, nascida do ovo-útero primevo, e multiplicou-se,
Ainda põe a mesma mão pesada sobre os ombros,
Ainda reclama e cobra e exige e nunca está satisfeita,
Ainda quer a pomba branca para engoli-la por inteiro,
Ainda ora uma prece ensalivada aos leões de Daniel, mas não a Daniel,
Ainda come o pão, bebe o vinho, e depois cospe na mesa,
Ainda beija a face e depois sorri mostrando os dentes de prata,
Ainda diz sim sob o sol e não sob a lua,
Ainda lava as mãos em sangue e assegura que estão limpas,
Ainda lança apupos quando sabe que não deveria,
Ainda espera o que já veio, e já se foi,
Ainda faz do homem achas para um fogo sujo onde se afogam as almas,
Ainda se justifica e argumenta, mas suas palavras são de gás cianídrico,
Ainda lança bombas incendiárias e venenos voláteis sobre gentes,
Ainda ajuda a tratar as feridas e sepultar os corpos, mas é demagoga,
Ainda finge procurar a cura, mas produz a doença em série,
Ainda transforma mentiras em verdades porque grita com imagens,
Ainda abraça a Deus e lhe fala ao ouvido, mas pelas costas sorri ao Príncipe,
Ainda reitera várias vezes que é inocente... Mas não somos inocentes.
Ainda ergue uma forca em cada árvore.
Ainda derruba cruzes, uma a uma, em cada gólgota.
(In: A CRUZ E A FORCA, 2007. Daniel Mazza).
//////