Muitas lições aprendi com o saudoso padre Ricardo, em minha adolescência. Mesmo sem comungar com a igreja romana, o tinha muito em conta. A sua delicadeza ao abordar temas os mais complexos, durante suas aulas de religião, nos deixava à vontade. Ele se tornava, desta forma, um amigo mais velho, sempre próximo.
Certa feita, ao me notar totalmente alheio à sua aula, procurou-me durante o intervalo. Meio encabulado, disse que haveria jogo no dia seguinte, sábado, e eu estrearia no time principal do colégio.
Ele me acolheu, dizendo que o futebol tinha sido sua paixão na juventude e causa também de muitos embaraços. Disse-lhe, sentindo-me à vontade, que o meu medo de falhar era o que mais me atormentava.
Pressentindo não termos tempo para tratar do assunto, pediu-me que o procurasse à noite, no salão paroquial.
Na hora combinada, eu lá estava. Encontrei-o lendo comentários sobre o campeonato brasileiro. Ele perguntou se já tinha lido aquele exemplar da revista. Não. Disse que aquele seria meu; que me entregaria na escola, durante a semana.
Propôs-me, então, a contar a história de um jogador do início dos anos sessenta, um dos seus fiéis na capital paulista.
Antes, porém, como preâmbulo, comentou um trecho do Evangelho de Mateus, capítulo e versículos que não me lembro, sobre a ansiedade, a confiança em Deus e os males de cada dia.
O jogador, um craque da segunda divisão, cujo nome era o mesmo do apóstolo, procurara-o, antes do final de um torneio, logo depois da meia noite, insone e perturbado. O tormento do fracasso o rondava, ameaçador. No seu caso, havia um grave precedente. Perdera um pênalti em outra decisão, meses antes.
O padre o fez ler e meditar os versículos do outro Mateus até a exaustão. Um treinador físico exigente não faria melhor. O rapaz, após voltar para casa e cumprir a receita à risca, dormiu após a nona leitura em voz alta, engolindo as palavras do trecho final, já sonolento: “... não vos inquieteis, pois, pelo dia de amanhã, porque o dia de amanhã cuidará de si mesmo”.
No dia seguinte, Mateus seguiu à regra as outras recomendações:
– Passou pela casa do treinador pela manhã, na Barra Funda, para avisar-lhe que não poderia participar da concentração, por determinação expressa do “seu confessor”:
– Almoçou cedo na casa de sua mãe, depois de lhe pedir a benção e se desculpar pela longa ausência;
– Visitou Armandinho Neves, antigo jogador e instrumentista de primeira, que, nos domingos à tarde, ensaiava regularmente, ao lado de chorões e outros amantes da boa música. Pediu que tocassem 1 x 0, do Pixinguinha.
Chegou à partida alguns minutos antes do jogo, a tempo de reunir-se com os colegas e o treinador no vestiário.
Naquela tarde, seu time golearia o adversário, com três decisivos gols seus.
A minha receita seguiu na mesma linha, com um roteiro prévio a ser executado. De acréscimo, além da leitura, eu deveria escrever um comentário sobre os citados versículos.
Ocorreu o que ele prenunciou: espetaculares defesas, na ingrata posição de goleiro, único lugar que me cabia entre as onze posições. Ele, como bom mestre e técnico improvisado, fizera questão de ir ao campo assistir ao jogo, orientando-me ainda, de quebra, nas bolas de escanteio.
Ao final, cumprimentou-me, pousou a mão no meu ombro e disse uma frase que somente anos depois eu decifraria:
– Meu caro pupilo, e não é que a vida imita a arte?!
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