I
Se há quase quinze anos este crítico fez uma recensão um tanto quanto pesada e, até certo ponto, deselegante do romance A Casa da Cabeça de Cavalo, de Teolinda Gersão, publicada no caderno AT Especial do diário A Tribuna, de Santos-SP, em 23 de março de 1997, o que lhe valeu merecidamente uma correção velada do então orientador de sua tese de doutoramento em Literatura Portuguesa na Universidade de São Paulo (USP), professor Massaud Moisés, desta vez, não há o que contestar em A Cidade de Ulisses (Porto, Sextante Editora, 2011), a última incursão da autora no gênero que assinala também os 30 anos de sua carreira literária.
É um romance bem acabado, com um fio condutor que prende a atenção do leitor – uma história que termina bem, como já bem observou Inés Pedrosa na Revista Ler, de Lisboa, fato surpreendente nestes tempos apocalípticos. E que tem como pano de fundo a história de uma Lisboa mítica, que teria sido fundada por Ulisses, e da de hoje.
Para que este crítico não fique tão mal com seus leitores, é de lembrar que naquela resenha de 1997 assinalava que a A Casa da Cabeça de Cavalo não era uma experiência inteiramente falhada, ou seja, tinha o seu valor, a começar pelo título, uma metáfora do tempo, pois a cabeça de cavalo de bronze teria a capacidade sobrenatural de ganhar vida na imaginação dos moradores e agregados que viviam na morada, fazendo-os retroceder e avançar no tempo de suas vidas. É aqui que reside o fulcro do romance: morrer talvez seja apenas a perda da memória, “o apagar das luzes em volta”, como diz a autora. E escrever uma maneira de se enganar a morte, de preservar a memória.
Se este articulista discordou da concessão do Prêmio de Romance e Novela da Associação Portuguesa de Escritores (APE) de 1996 para A Casa da Cabeça de Cavalo, não esteve sozinho, mas apenas acompanhou o movimento de vários críticos portugueses da época, que entendiam que o galardão mais bem teria ficado se tivesse sido atribuído a Alexandre Pinheiro Torres (1921-1999), por A Quarta Invasão Francesa, ou a Urbano Tavares Rodrigues, por A Hora da Incerteza, ou a Francisco José Viegas, por Um Céu Demasiado Azul. Lido e relido, porém, A Cidade de Ulisses, se este articulista não faz aqui um mea culpa, quer ser um dos primeiros a bradar que este romance merece um prêmio tão importante quanto aquele ou, quem sabe, a autora o Prêmio Camões pelo conjunto de sua obra.
Seja como for, apesar da oposição de alguns críticos, a verdade é que A Casa da Cabeça de Cavalo tem tido uma trajetória brilhante, alcançando boa recepção entre o público-leitor – que, afinal, é o que interessa. Além disso, foi finalista do Prêmio Europeu de Romance Aristeion e ainda teve uma versão teatral que conquistou o Grande Prêmio do Festival Internacional de Teatro de Bucareste, em 2005. Não é pouco. Para azar dos críticos.
II
É de assinalar que, em seu sexto romance – entre os dois citados, há A Árvore das Palavras (Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1997) –, Teolinda Gersão volta ao tema da perda da memória, pois a mãe do protagonista, o artista plástico Paulo Vaz, passa a sofrer precocemente, aos 52 anos de idade, de mal de Alzheimer, quem sabe, uma fuga inconsciente de uma situação claustrofóbica – o marido, 16 anos mais velho, era um ex-militar afeito ao salazarismo e àquela concepção de mundo rígida do velho regime que levava para a casa e para o trato com os familiares.
Em poucas e resumidas palavras, o romance trata do encontro de um homem com uma mulher em Lisboa. A história de ambos, que é também uma história de amor por uma cidade, leva o leitor a percorrer múltiplos caminhos, entre os mitos e a História, a realidade e o desejo, a literatura e as artes plásticas, o passado e o presente, as relações entre homens e mulheres, a crise civilizacional e a necessidade de repensar o mundo.
Ou melhor, é a história de um homem e duas mulheres – uma que fica para trás, depois de anos de convivência, e de outra, que abre uma nova fase na vida desse homem. Deixar Cecília e partir para Sara. Até porque, como diz o protagonista, neste romance escrito por uma autora sob uma perspectiva masculina, o amor não dura. “Um dia acordamos e o encanto desfez-se. O mundo voltou a ser o que era. Ou seja, mais ou menos nada. É isso o que encontramos, Cecília. O amor é uma ficção com que escondemos por algum tempo o vazio, dentro e fora de nós. Essa é uma experiência que nunca tiveste, mas vais conhecer um dia, inevitavelmente: o vazio. O nada”. (p.27).
É essa vida vivida que Vaz – provavelmente uma homenagem a outro Vaz, igualmente entranhadamente ligado a Lisboa, o Luís Vaz de Camões – recupera com a memória, como se a resgatasse para Cecília, que a conheceria muito bem, até porque fora não só sua cúmplice e companheira, mas, sobretudo, sua ajudadora, responsável por instalações e projetos desenvolvidos pelo pintor.
E o faz em forma de diálogo/monólogo: “(...) A primeira vez que te vi foi numa sala de aula, Cecília. Na altura eu era uma espécie de assistente de uma das cadeiras do primeiro ano. No entanto nunca me senti teu professor, vestir a pele do mestre não combinava comigo, até porque eu não queria ser professor, queria já então ser artista a tempo inteiro” (p. 18).
Em contrapartida, mais adiante, é a vez de Cecília recuperar o tempo passado (mas não perdido): “(...) Mas no fundo não era Lisboa que procurávamos, era um ao outro e a nós mesmos que procurávamos em Lisboa. Éramos viajantes, e é para si próprios que os viajantes caminham. Querem saber quem são e onde moram. E, como escreveu Novalis, vamos sempre finalmente para casa”. (p. 66).
Até que, um dia, depois de muitos encontros e desencontros e separações temporárias, surge uma terceira. Diz Vaz: “(...) Alguns meses depois conheci Sara, e inesperadamente a minha vida mudou. (...) Fui sabendo, devagar (porque ela falava pouco de si), que era juíza, tinha uma carreira feita a pulso no meio de obstáculos, porque não era vulnerável a pressões e havia-as de toda a ordem no seu quotidiano. A justiça em Portugal era um terreno pantanoso. Divorciara-se havia quatro anos, tinha sido um processo difícil, porque o ex-marido, advogado de renome, parecia querer prolongá-lo e litigá-lo o mais possível e usava para isso todos os artifícios, sempre a coberto da lei”. (pp. 166-167).
Como se vê, o estilo de Teolinda Gersão é um dos espetáculos deste livro. O outro são as descrições que faz de uma Lisboa que conhece como ninguém. Exaltada por tantos cantores, poetas e romancistas ao longo da História, Lisboa ainda não tinha sido homenageada por um hino de amor de sons tão delicados como os que se ouve ao longo deste romance.
III
Teolinda Gersão (1940) nasceu em Coimbra, estudou Germanística e Anglística nas Universidades de Coimbra, Tuebingen e Berlim e foi leitora de Português na Universidade Técnica de Berlim, além de docente na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e, posteriormente, professora catedrática da Universidade Nova de Lisboa, onde ensinou Literatura Alemã e Literatura Comparada até 1995. A partir dessa data, passou a dedicar-se exclusivamente à literatura.
Além da permanência de três anos na Alemanha, viveu dois anos em São Paulo, época da qual há reflexos em alguns textos de Os Guarda-Chuvas Cintilantes (1984), diário ficcional. Também conheceu Moçambique, cuja capital, então Lourenço Marques, é o lugar onde decorre o romance A Árvore das Palavras. Foi ainda escritora residente na Universidade de Berkeley em fevereiro e março de 2004.
É ainda autora de O silêncio (romance, Prêmio Pen Club 1981), Paisagem com mulher e mar ao fundo (romance), O cavalo de Sol (romance, Prêmio Pen Club 1989), Os teclados (novela, Prêmio da Associação Internacional dos Críticos Literários), Os anjos (novela), Histórias de ver e andar (contos, Grande Prêmio do Conto Camilo Castelo Branco 2002), O mensageiro e outras histórias com anjos (contos) e A mulher que prendeu a chuva (contos, Prêmio Máxima de Literatura 2008, Prêmio de Literatura da Fundação Inês de Castro 2008).
Está traduzida em onze línguas. A versão teatral de A casa da cabeça de cavalo ganhou o Grande Prêmio do Festival Internacional de Teatro de Bucareste, em 2005. O conto “Um casaco de raposa vermelha” foi adaptado a peça radiofônica e transmitido pela BBC e pela New York Public Radio, em 2008.
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A CIDADE DE ULISSES, de Teolinda Gersão. Porto: Sextante Editora, 208 págs., 2011, 15,50 euros. E-mail: editorial@sextanteeditora.pt
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(*) Adelto Gonçalves é doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002) e Bocage – o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003). E-mail: marilizadelto@uol.com.br
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