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terça-feira, 14 de agosto de 2012

Da leitura de Aíla, Chico e Jair (Nilto Maciel)


Hoje, dia dos pais (sou quatro vezes pai e, mais seria, não fossem as mulheres tão alheias ao meu amor à humanidade), acordei com vontade de ser pai de novo. Telefonei para sete amigas e nenhuma me deu ouvidos. Chateado, errei pela casa, chutei uma bola imaginária (que poderia significar o mundo, a Terra, o globo terrestre) e agarrei, com unhas e dentes, três compêndios que me espiavam com cara de sedução. Pu-los sobre a mesa e os mirei. Sim, eu os li recentemente. Um é da amiga e conterrânea Aíla Sampaio, outro do mineiro-paulista Chico Lopes e o terceiro do velho (acho que nos conhecemos desde 1980) Jair Humberto Rosa. Três obras literárias que me deram muito prazer no finalzinho de julho e neste começo de agosto. E me fizeram pensar na paternidade, na maternidade, no Universo em expansão, na harmonia dos astros e na solidão dos poetas.


De olhos entreabertos
Aíla Sampaio é poeta, contista, cronista e ensaísta. Em 2009 nos presenteou expressivo ensaio sobre narrativas de Lygia Fagundes Teles: Os fantásticos mistérios de Lygia. De volta ao verso (estreou em 1987, com Desesperadamente nua), nos dá o alentado (172 páginas) volume De olhos entreabertos. A primeira aba traz consideração de Nicolau Saião. E dele transcrevo isto: “Duma forma que tenho por íntima e solene, mas doada, a autora deste livro expõe-se tanto quanto nos expõe a nós. Porque, ao sermos assim leitores, irmanamo-nos na sua conquista de mais luz – essa luz com que os poemas, pequenas fogueiras brilhando na negrura dos tempos, afixam a sua transmutação, a sua fome de beleza e a sua certeza dum futuro encontrado”.
A apresentação (“A poesia de Aíla Sampaio”) coube a Dimas Macedo. E dele colhi isto: “A poesia de Aíla, nesse seu livro, de título sugestivo, faz-se a um só tempo verbo e escansão, solidão e reticência, e purgação da morte em face da libido do tempo”. Há, ainda, outro breve estudo, de Ana Jácomo: “Aliança com a sensibilidade”.
A coleção, composta de versos livres e poemas de variadas formas, tem linguagem desataviada, longe dos malabarismos dos surrealistas e dos chamados poemas herméticos.Há até uma confissão poética ou de arte poética: “Tu lês os meus versos / como quem se procura / entre rimas e metáforas”. Como se a poetisa (amante) dissesse ao leitor (amado): não preciso de rimas e metáforas para ser poeta.A poesia de Aíla é elaborada com o vocabulário das pessoas simples, não de leitores de James Joyce. Como nestes versos do primeiro poema do conjunto: “O tempo costura a vida com pontos de cruz, / fazendo desenhos multicores no véu dos dias”. Não é, pois, Aíla, uma parnasiana tardia. É modernista, pós-modernista e basta.

A herança e a procura
Chico Lopes apareceu contista e agora se mostra memorialista. A herança e a procura é seu “primeiro exercício literário de memórias”, como explica no posfácio. A peça tem prefácio de Rosângela Vieira Rocha e 17 capítulos. Uma das observações mais objetivas da escritora mineiro-brasiliense se encontra logo no terceiro parágrafo: “O que mais impressiona, nas memórias de Chico Lopes, é verificar que as personagens de Nó de sombras, Dobras da noite e Hóspedes do vento, seus três livros de contos, e da novela O estranho no corredor, sua primeira incursão na narrativa longa, saltam, a todo momento, das experiências narradas em A herança e a procura”.
No primeiro capítulo – “Uma rua como fado” – aparece logo a famosa (para Chico) Rua Antonio Sabino, onde o escritor nasceu e aquela em que mais morou (na cidade paulista de Novo Horizonte). “Impossível dizer tudo o que ela me evoca” (p. 15). Nesta frase está, talvez, a chave da busca, a eterna busca das origens, em todo ser humano. Pois, como já se disse à exaustão, o homem anda sempre para trás, na tentativa de reviver a infância e, nesse processo de regresso, alcançar o útero materno. “Havia um cheiro de café em minha infância” (p. 31).
Chico vai desfiando o rosário das lembranças, pacientemente, como nos romances mais intimistas. “Um rio está sempre na memória de todo mundo” (p. 35), desde as lucubrações dos primeiros filósofos, como em Heráclito, aquele da célebre frase “não é possível entrar duas vezes no mesmo rio”. Ou na poesia mais transcendente, como nos versos de Fernando Pessoa (ou Alberto Caeiro): “O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia, / Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia / Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia”.
E mais eu me perderia em navegações, ou nessa procura de Chico Lopes, fosse eu leitor de olhos agudos e escrevinhador de dedos mais finos.

Ponto final
Jair Humberto Rosa estreou em 1980, com Os mendigos de paletó e gravata. Guardo o exemplar que ganhei dele. Não sou de vender a sebos os impressos que ganho de amigos ou conhecidos. Aliás, não os vendo; dou-os.
Neste Ponto final (de 110 páginas), meu amigo de Ituiutaba me fez lembrar umas andanças pelos interiores mineiros. Passei uns dias lá, acho que em 1980, conheci diversos escritores – acontecia uma feira literária – andei pela cidade, à noite (bares e cabarés) e durante o dia, curioso que nem bacurau.
Jair envereda pela vida do personagem Agenor, em romance de revolta pessoal, de rebelião individual, de um brasileiro cansado de ser mandado pela mulher, pelos filhos e pelo chefe com quem trabalha na empresa de transporte, como motorista. Eva Bueno Marques, na apresentação, se refere ao modo de escrever de Jair: “Narra com propriedade os mais variados fatos do cotidiano, dá vida e brilho ao que escreve, transmite o que pretende, proporcionando prazer a quem o lê”.
            A narrativa de Jair não segue linha reta. Escrita na terceira pessoa por narrador onisciente, exibe o protagonista Agenor em diversas fases. No início, aparece em casa, “em mais uma madrugada”, a despertar: “A sensação que invade Agenor é a de que ele mal acabara de se deitar e dormir”. O narrador faz um retrato do personagem, não em pura ou mera descrição de traços fisionômicos, caricaturais ou de caráter. Não, não se presta a isso, cacoete que tem empobrecido muitos romances. E vai mais além: ao passado de Agenor, cujo pai era pedreiro e morreu novo; aos habitantes da rua onde mora o personagem; a outras histórias.
E mais não posso expor, para não roubar ao leitor o prazer de descobrir esse ser fictício tão “rico” enquanto protótipo de uma sociedade cada vez mais fascinada pela aparência em detrimento dos valores humanos.

Conclusão
Como nos ensaios acadêmicos, termino em conclusão: como foi bom ler meus três amigos. Como nas crônicas mais ingênuas, no entanto, volto ao começo e me lembro de que sou pai e preciso dar carinho a minhas filhas. Alô, Fernanda! Alô, Menita! Alô, Nioche! Alô, Aretusa! (Estão muito distantes de mim, em Bombinhas, Santa Catarina, e Brasília). Mandarei, para vocês, as obras completas de Aíla Sampaio, Chico Lopes e Jair Humberto Rosa. Aguardem. Mil beijos de amor.
Fortaleza, 13 de agosto de 2012.
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