O imperador D. Pedro II do Brasil
desembarcou em Lisboa no dia 12 de junho de 1871 na companhia da imperatriz e
logo se tornou o alvo predileto da impiedosa lucidez dos jornalistas Eça de
Queiroz e Ramalho Ortigão, que se apresentaram a sua majestade sem temerem passar por imodestos,
como dois sujeitos que “não são nada”...
Eça, no entanto, sob o humorismo mordente das “Farpas” escritas a quatro mãos com
Ramalho Ortigão – que viria a ser tio-avô de um dos maiores humanistas
brasileiros, o escritor e notável memorialista Antonio Carlos Villaça –,
mal-disfarçava a admiração por um monarca que “não abusava” das riquezas do seu
vasto império, muito maior em dimensões territoriais e reservas naturais do que
toda a Europa.
Recebido no cais do Sodré pelo rei de Portugal
em pessoa, que aliás era seu
cunhado, D. Pedro causou estranheza por viajar como um simples particular, sem
nenhum séquito e sobretudo, o que era e continua sendo o mais espantoso, sem
debitar a conta do seu turismo ao tesouro da Coroa, por entender que as
riquezas do país não lhe pertenciam, mas, sim, ao povo brasileiro.
Dispensara o imperador do Brasil as honrarias
devidas a um Chefe de Estado, justificando que quem visitava Portugal era o
cidadão brasileiro Pedro de Alcântara e não D. Pedro II, provocando assim um vasto e divertido, embora
às vezes contundente, anedotário. Decididamente, tratava-se de uma excepcional
personagem.
Como vinha de um país assolado pela febre
amarela, teve D. Pedro de cumprir a Quarentena regulamentar, imposta pelas
normas de saúde pública, como qualquer brasileiro que desembarcasse em solo
estrangeiro.
Recusou a quarentena no Palácio de Belém ou em
alto-mar, num navio de guerra, como lhe facultaria o cargo e a condição real,
preferindo recolher-se ao Lazareto, na companhia da imperatriz e dos demais
companheiros de viagem. Nada de privilégios nem exceções para o cidadão Pedro
de Alcântara!
Desfrutando em toda parte da fama de ser uma
espécie de Marco Aurélio dos trópicos, ou seja, o rei mais sábio e culto da
época, desmente assim a idéia que o vulgo fazia de tão notável governante,
justamente o oposto do seu cunhado, D. Fernando de Portugal, que vai recebê-lo
acompanhado de áulicos e sem abrir a mão dos simbolismos inerentes ao cargo que
a sorte lhe destinara – a origem dinástica e o desfrute vitalício do trono de
um país que se empobrecia.
Eis como Eça, fazendo as honras ao “direito da
sátira” – como uma das inatacáveis liberdades do pensamento humano –, apresenta
e descreve o ilustre e sóbrio visitante que pela primeira vez e de modo tão desconcertante
pisava o solo europeu:
“Esteve em
Lisboa sua majestade imperial
o senhor dom Pedro II do Brasil. É um príncipe extremamente liberal, que usa
dos requintes democráticos com a mesma profusão luxuosa que um dandy poderia
ostentar, nas suas gravatas, nas suas luvas ou nos seus perfumes. Põe a coroa
na cabeça com a simplicidade despreocupada com que carregaria sobre a orelha um
boné de viajante. Mete debaixo do braço o seu cetro com a sem-cerimônia
simpática de quem trás um guarda-chuva. Deseja que o fulgor da realeza fira tão
pouco os olhos, que aquele que o notar possa confiadamente aproximar-se e
pedir-lhe o seu fogo.
O senhor
dom Pedro II não põe
somente a democracia na sua política e nas instituições do seu império. Também
a põe nos seus hábitos, nos seus usos particulares, na sua conservação, nas
suas maneiras, no forro do seu chapéu e na casa do seu paletó.
Se a
democracia se pudesse converter em alimento, sua majestade imperial teria acabado com ela,
comendo-a com pão.
Sua majestade imperial não aceitou
hospedagem que lhe estava preparada no palácio de Belém, nem a estação de
quarentena a bordo de um navio de guerra.
Preferiu a
mesa redonda do Lazareto e um quarto no hotel Bragança.
Quis este
notável e grande príncipe dar ao mundo o espetáculo cheio de lição e de
moralidade de um soberano que principia o dia mandando pergunta se há cartas
para o número marcado no anel do seu guardanapo, e o termina pondo das botas
para engraxar fora da porta do seu quarto.
Quantos
reis não invejariam – agora principalmente que o oficio se está tornando grave
– o estranho prazer deste monarca, que, abancando a uma table d´hôtel, larga
das mãos as rédeas do governo para receber um palito de um estudante em férias,
e passa a mostarda a um commis em nouveauté!"
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