São
poucos os livros de crônica chegados à minha casa nos últimos tempos. Porque,
certamente, se editam mais romances, contos e poemas, além de biografias
políticas, receitas culinárias, previsões de catástrofes e orientações para a
salvação da alma. Apesar disso, sou leitor desse gênero híbrido (a crônica) tão
fustigado por certos críticos. Gosto da crônica que se encosta no conto, às
vezes distraidamente, outras propositalmente, como quem não quer nada,
querendo. Apego-me também à ficção simples que deixa de lado o enredo e
envereda pela poesia ou pela linguagem poética.
Pois
passemos logo ao repertório de Simone, antes que me sorvam os cronistas mais
antigos (como aquele Pero Vaz, provindo de Portugal para falar da beleza de
nossa gente, aquelas meninas nuas na praia da Bahia –ainda não se chamava Bahia,
mas ainda se parecia com o Jardim do Éden, e nem negros havia por lá). Ou como
aqueles diligentes hebreus tão ciosos de seu passado, dispostos a registrar um
a um (ou quase todos) os nomes de seus “patrícios”, naquele conjunto de
crônicas fundadoras de tantas religiões.
A
obra de Simone Pessoa intitula-se Bolsa
de mulher. Li-a quase toda antes de ser livro. Simone me mandava
semanalmente uma peça, às vezes antes de se estampar nas páginas do jornal O Povo. E eu reproduzia no meu blog. E
fui gostando daquilo. Tal como José Castello. Pois escreveu para as abas: “E
crônica – gênero sem gênero, que oscila entre os vários gêneros, acolhendo a
todos – é literatura por excelência. Simone Pessoa tira partido dessa
inconstância: escreve com leveza, e, como quem não quer nada, avança sobre os
temas mais densos e perigosos”.
O
objeto intitulado Bolsa de mulher está
bonito, feito bolsa de mulher. Qualquer bolsa, seja pobre, seja rica. Seja de
grife, seja de pequena “fábrica” artesanal. Porque fabricado (este Bolsa de mulher) ali na Rua Jorge da Rocha, ruela da velha Aldeota, da abnegada e
voluntariosa Albanisa Dummar Pontes, a criadora desta fábrica de guloseimas
literárias chamada Armazém da Cultura. Não falarei da capa (Suzana Paz), com
aqueles desenhos de gatos, cachorros, sapatos, relógios, calcinhas, brincos,
tudo em miniatura. Deixo isso para os conhecedores de criação gráfica.
Não
cuidarei tampouco das crônicas (o conteúdo), porque são muitas (quase uma
centena) e não disponho de espaço (seria aptidão?) para me alongar nestas
linhas de comentarista sem diária. Basta-me dizer: adorei as crônicas de
Simone, desde a primeira, aquela confissão de escritor: “Tenho uma doença
crônica desde que tomei consciência de mim”. É a doença da literatura, da
criação literária. “Aliás, desconfio de que se você chegou até aqui é porque já
é tão doente crônico quanto eu. Deve igualmente ser sensível à poesia.
Provavelmente, se emociona diante do simples, do belo e do singular”.
Simone,
como todo bom cronista, sabe lidar com os mais variados assuntos. Ou não os
teme, não foge deles. Assim, não deixa de lado visitas à cartomante, o tilintar
do triângulo de metal do vendedor de chegadinhos ou uma tarde no cabeleireiro.
Está atenta, muito atenta, aos movimentos do mundo, das pessoas, da cidade. E
sabe registrar cada pedacinho desse universo. Como uma sala de estar moderna:
“Na sala tomada de móveis antigos, uma estante de madeira escura com vitral
fosco e jateado repleta de livros empoeirados. Retratos esmaecidos de
antepassados na parede”. São descrições soberbas, próximas do retrato e do realismo
dos grandes escritores. Sem se tornar enfadonha (a descrição) e sem aquela
bizarrice dos que nada sabem contar.
A
narradora de Simone Pessoa – quer como ela mesma (muito comum em crônica), quer
como personagem não identificada por nome – é mulher sem papas na língua, que se
desnuda, se desvela, sem pejo. E pode ser muitas. Não é necessariamente a mesma
mulher em cada uma das crônicas. Ou poderá ser. Assim, em “O homem de paletó” a
gente se depara com uma revelação, o mistério, o sonho, o desejo reprimido da
personagem: “Desliguei a luz da cabeceira para me aninhar entre os lençóis.
Quando me virei para encontrar posição mais aconchegante, olhei de relance para
a parede... Um susto! Na penumbra do quarto, por trás do cabide, um homem alto,
de paletó, estava parado.”
Bolsa de mulher não é
apenas um painel de observações do cotidiano de Simone ou de qualquer mulher
brasileira. É também um exercício de poesia contínuo, rotineiro, próprio de
quem se dedica integralmente ao ofício literário ou de escrever poeticamente.
Fortaleza,
19 de setembro de 2012.
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