Autora muito premiada, com
destaque para nove láureas concedidas pela Academia Brasileira de Letras,
Stella Leonardos publicou mais de uma centena de livros, entre volumes de
romances, poemas, literatura infantil e dramaturgia. Formada em Letras
Neolatinas, tradutora do inglês, francês, italiano, espanhol, catalão e
provençal, sua estreia aconteceu com Passos
na areia, em 1941. Os
críticos costumam situar a vasta obra poética de Stella Leonardos na terceira
geração do Modernismo, relacionando, nessa condição, os livros Geolírica (1966), Cantabile (1967), Amanhecência
(1974) e Romanceiro da Abolição
(1986).
Nome dos mais festejados pela crítica, Stella Leonardos vem entregando
há muito tempo sua vocação poética ao projeto de recriação de um Brasil bem
brasileiro. Da sua alma cancioneira e romanceira salta um Brasil de sentimentos
românticos, epicidades, ideais, relatos e saberes populares. Brasil iluminado
de estados líricos, formado por elementos míticos, que irrompe do lugar onde
nasce a história feita de passagens marcantes, ações, tantas razões e
casos.
O épico apresenta, o lírico lembra, o dramático articula mundos
interiores no eixo do ser-estar, movido pelos instantes dos seres humanos e criação
da vida. No palco da duração crítica e contínua dos acontecimentos expande-se a
poesia de Stella Leonardos. Conota essa maneira íntima do lírico, calcada em
permanente mergulho na memória, feita de emotividade, cena histórica e
pesquisa. Gentis seus versos, em Memorial
da Casa da Torre recordam vivências nas arcadas, aludem a finíssimos
lavores nos salões e aposentos. Abrem-se nos portões com senhores de terras na
conquista. Tocam no berço territorial de nossa Pátria, no músculo dos negros,
no fôlego dos índios. Restauram o homem através de intenções, ímpetos, sonhos e
idealismo. Passado, nessa poesia reveladora de um racontar acurado, é escutado no
desassombro de nossas gentes, vencedoras de sertões na música rústica das
boiadas.
Poesia é emoção condensada em linguagem, rica, tensa e ambígua. Reflexão
em suas formas geométricas calcadas na imagem, sob o pretexto da escrita para
revelar uma ideia. Em Stella Leonardos mostra um discurso significante pontuado
pelo som, no ritmo que ela imprime em sua maneira particular de sustentar a
ideologia. Sua palavra cantante escorre musicalmente com interferência de
vozes, tornadas dinâmicas, apropriadas, nas lembranças e cenas descritas.
O registro que é feito do fato bom ou triste é mais endereçado aos
ouvidos do que aos olhos. Sua dicção musical enceta versos que dialogam com a
história, ecoam no que repercutiu procedente de alguém que permaneceu no
tempo. Em seus cancioneiros e
romanceiros tão brasileiros, Stella Leonardos canta e conta. Revive o Brasil
com maestria de poeta que encanta, consciente de que no rememorar tudo é
ilusão, sonhar é sabê-lo, como falou Fernando Pessoa.
Assinalada a terra por armas e brasões de uma gente remota, que aqui
chegou por mares nunca dantes navegados, o governo português teve que enfrentar
situações desfavoráveis para fazer a colonização. Um desses obstáculos
consistia na imensidão da terra descoberta, com a sua mata de sono milenar,
jamais incomodada. Foi necessário dividir a terra rica em capitanias, glebas de
muitas léguas, e doá-las àqueles que tivessem condições de fixar o homem no
solo.
Por quase três séculos, a Casa da Torre distendeu suas cordas e acordes
de inúmeros serviços prestados ao Brasil, começando pelas guerras aos piratas,
aos holandeses e da Independência. Dali partiram os primeiros desbravadores do
Norte brasiliense, as intrépidas bandeiras, as principais entradas dos
sertanistas do Nordeste.
Em Memorial da Casa da Torre, um
dos episódios mais significativos da história do Brasil Colônia, oriundo da
influência da prole mameluca de Garcia D’Ávila, que levou domínio e ambição às
regiões desconhecidas, Stella Leonardos, hoje com idade avançada, demonstra que
ainda domina bem o verso e faz uma poesia cativante, bebendo na tradição da
poesia de todos os tempos. Usa o arcaísmo e o neologismo para narrar os
acontecimentos da Pátria nascendo a passo de marcha. Na decorrência de versos
que se alteiam com vozes em coro, de viva gesta, acende sinais luminosos da labareda
que haveria de contribuir como ideal de heroísmo, cultura e civilização.
É da tradição da poesia ibérica vazar o amor e a saudade como figurantes
que convergem para o lirismo e o épico. O registro de vultos e fatos heróicos
são recorrências manejadas por rapsodos com inspiração no populário e saberes
anônimos. No caso de Stella Leonardos, o relato poético se municia de pesquisa
e de saberes locais do populário. Atenta, a poeta não se descuida de rimar
memória e fatos que melhor repercutam ao fazer modelar do nosso cancioneiro e
romanceiro. Seus livros aí estão espalhados para que sejam lidos como resultado
da aproximação mágica de uma alma sensitiva à nossa memória, arrebatada de
sentimentos românticos, valendo-se do histórico por quem ama a beleza e o valor
exercido pela estima da Pátria.
No poema “In Memoriam”, introdutório ao assunto deste Memorial da Casa da Torre, Stella
Leonardos abre seu verso terno para o que vai contar e cantar, com leveza deixa
ser conduzida pela inspiração que lhe é particular:
No barro desses tijolos
Por mãos índias
acalcado
Quanta voz índia
não dorme?
Na alvenaria da
pedra
Por mãos afras carregada
Quanta voz
negra não pesa?
Na torre desse
Castelo
Por brancos
rostos vigiada
Quanta saudade não
se ergue?
A autora desses versos torna suficiente a imagem que interpela e, ao
mesmo tempo, contempla a passagem do tempo guardada na memória. Apoiada na
sensação do que se refaz triste, sob um ritmo que atrai, nos embala e envolve
até o final da cantiga. Como estratégia usual de seus cancioneiros e romances,
ela sabe tirar efeito na linguagem quando emprega o neologismo através dos
vocábulos que inventa: saudadeado,
largoandante, longivozes, multivária, plurilínguas, existenciar, surpresada,
passilargo, fugileve, impulsada, noviterra, ensonho, sonoite, novihorizontes,
azulando.
A Casa da Torre é a primeira grande fortificação portuguesa do Brasil.
As pegadas dos valentes que a povoaram com desassombro inigualável dos tempos
de Garcia Dávila renascem neste memorial poético de Stella Leonardos. Da
cidadela em ruína, muralhas cobertas de musgo, gestos que resvalam por entre
sombras, das fendas e rastros do poder extinto, reencontramo-nos na poesia de
versos generosos. Das paisagens com passagens cheias de histórias marchamos,
somos levados com o mesmo brilho das gerações que fundaram nossa nacionalidade.
Referência
Bibliográfica
LEONARDOS, Stella. Memorial da Casa da Torre, Gráfica Santa Marta, João Pessoa,
Paraíba, 2010.
*Cyro de Mattos é escritor
premiado no Brasil e estrangeiro.