(Ronaldo Monte)
Semana passada, recebi visita de Ronaldo Monte. Mora em João
Pessoa (natural de Maceió) e veio a Fortaleza, com outros psicanalistas, para
um encontro científico. Vinha da Europa, mas não se mostrou (porque não deve
ser) enfatuado, não falou insistentemente em Paris, Roma, Londres, como o fazem
alguns viajantes que vêm me causar inveja. Para lhes barrar os desígnios de malvados,
tomo a palavra e me ponho a contar passeios pelos arredores da Torre Eiffel. Então
eles se calam ou mudam de assunto: Cansei, Nilto, de tanto viajar pelo velho
mundo. Agora é voltar para o Benfica, ler meus livrinhos comprados no sebo e
sonhar com a glória literária.
Ora, estou a divagar por mundos imaginários, quando meu dever
é comentar o novo impresso de Ronaldo Monte (que me ofertou um exemplar de O baú do anão, contos, 2012). O volume
tem 165 páginas, traz capa de Mônica Câmara (quem será?) e se publicou pela
Editora Universitária da Paraíba. Nas abas, trechos de exames críticos de Lau
Siqueira (correspondia-me com ele, quando morava em Brasília), Hildeberto
Barbosa Filho (poeta e crítico de minha admiração), Sérgio Castro Pinto
(cronista com um pé na vida e outro na literatura) e Neroaldo Pontes de Azevedo
(que ainda não descobri). A quarta capa apresenta o busto do escritor, com uma
biblioteca ao fundo, e uns dados biográficos. Prefácio de Maria Valéria
Rezende: “Ronaldo Monte não é anão”. Não, não é. Constatei isso em minha sala. Uma
frase pode ser colhida: “São contos curtos – muitos deles criados a partir da
provocação dos temas sugeridos no anárquico Clube do Conto – sempre
surpreendentes, ou engraçados, ou chocantes, ou líricos, ou intrigantes, ou
tudo isto ao mesmo tempo”.
A publicação está dividida em dois blocos: “O baú do anão”,
com 56 relatos, e “André à sombra das moças”, com 16, antecedidos (estes) por
uma apresentação de André Ricardo Aguiar. Encerra-se com estudo de Rinaldo de
Fernandes: “Entre o conto e a crônica, o escritor”.
Para não dizerem que embaso observações em orelhas e
prefácios, deixarei para o depois a leitura do dilucidamento do contista
maranhense. E partirei do começo, como barco que sai do porto no rumo do alto-mar.
A primeira composição, “A maldade dessa gente”, tem como protagonista (e
narradora anônima) mulher de um sujeito também sem nome explícito: “meu
marido”. O título extraiu-se de letra de samba de Ataulfo Alves, mencionado no
início (“Botou um disco do Ataulfo Alves pra gente ouvir baixinho”) e no final
(“Quem está certo é o Ataulfo Alves: a maldade desta gente é uma arte”). A
história (ou a trama) é simples, corriqueira, dessas de todo dia ou toda hora,
principalmente na vida das pessoas mais pobres das cidades brasileiras: bebida,
música, sexo, mexericos, separações. Ingredientes da chamada fase áurea da
música popular brasileira, do anedotário e da crônica.
Como, porém, o contista Ronaldo Monte conseguiu (ou consegue)
transformar em peça literária essa simplicidade, esse cotidiano das pessoas
mais pobres, sem cair na vala comum da reportagem, sem adotar como modelo a
cópia fiel do causo, do riso fácil, ou a reprodução nua e crua da fala de
mulher sem estudos, certamente analfabeta, para quem o “compadre Dílson” é um
homem “estudado”, que lia jornal ou revista e via televisão e tinha discos de
Ataulfo Alves?
Ronaldo Monte sabe
narrar, pratica as mais recentes técnicas da narração e se atém ao episódio
curto, de linguagem simples, sem se prender aos modismos, às gírias e aos
cacoetes jornalísticos. Assim, vai do enredo bem delineado à composição mais
próxima do flash, quase sem trama. É
o caso de “Brisa e rajada”. Os personagens são apenas seres vivos. Nem se sabe
se são humanos: “eles permaneceram grudados um no outro”. Certamente o são.
Nomes não têm ou não lhes são mencionados. O narrador também não é percebido.
Pode até nem ser humano. Talvez seja um olho, uma câmera fotográfica ou uma
filmadora: “Faltou luz, sim”. Não há um drama, há apenas a descrição de um
ambiente e alguns movimentos: dois corpos vivos, um ventilador, uma lâmpada, um
bisturi, uma cama, suor, além da matéria invisível: a brisa, o calor, um
calafrio, uma rajada. Lembra as ficções simbolistas do final do século XIX e
começos do XX.
O psicanalista de João
Pessoa não se mostra nem um pouco interessado em parecer escritor da era da
Internet. Seus personagens ouvem Ataulfo Alves. Outros são tão antigos quanto
Mao Tsé-Tung (com esta grafia, de quando eu compulsava a geografia e a
matemática) ou Mao Zedong. E isto não importa para a literatura ou a arte. Talvez
a maior parte das obras artísticas fundadas no presente (do artista) sejam
vistas, mais adiante, como distantes de sua realidade, ocas, sem substância. O
que relata Homero? Certamente não conta fatos de seu cotidiano, mas de um tempo
heróico e mítico. O que narra Machado de Assis (o do início da república, após
a escravidão)? Casos do tempo do império.
O mais gostoso, porém, na
arte de Ronaldo Monte, está na roupagem (linguagem) sem atavios, sem
balangandãs, sem grifes, sem modas. É a chamada “difícil simplicidade” (a mesma
de Machado e Graciliano), de vez em quando relembrada pela crítica. Vejamos
como se inicia o relato que dá título ao conjunto: “Com todo anão, Meia-légua
era esquisito”. A ficção é simples em todos os sentidos, embora não seja tão
corriqueira, tão vulgar. O anão do circo “passava o tempo todo de cara fechada,
sentado no seu baú”. Quem já leu isto ou história como esta? O trapezista se
aproximou do anão e confessou ter praticado um quase-crime: abrira o baú do
anão. Queria saber o que lá havia guardado. Qualquer pessoa se irritaria, se
lhe abrissem o baú, sem autorização. Pois sabem como o contista conta isso?
Assim: Meia-légua, ainda a olhar para o nada, disse: “este baú é para me
enterrarem, quando eu morrer”. Em certo sentido, traz à lembrança as jóias de Anton
Tchekhov. Ou não?
Para analisar esta obra
de Ronaldo Monte, o também contista Rinaldo de Fernandes (no posfácio) fez uma
longa digressão teórica e histórica: iniciou-a com uma referência à chamada
“ruptura dos gêneros” (Mário de Andrade, diferença entre conto e crônica),
passou à definição de crônica e se deteve diante de O baú do anão, que seria composto de narrativas realistas
(crônicas) e fantásticas (contos). A seguir, o professor e crítico fez passeio
rápido (síntese e investigação) por cada uma das peças.
Não examinarei, um a um,
os contos, nem as crônicas. Isto é tarefa maçante. Além do mais, não me atraem
muito os entrechos de per si. Gosto mesmo é de frases bem torneadas, orações
cheias de verbos e substantivos comuns. Não de verbos exóticos e substantivos
esdrúxulos. Não, nada disso. Bastam-me frases como esta: “Se gosta de livros,
há de gostar de mim”, como pensava Miguel Quijada a respeito de Dulcineia, no
imaginoso “A condição e o exercício que transformaram a vida do Sr. Quijada”,
que tem epígrafe de El Ingenioso Hidalgo
Don Quixote de La Mancha.
Fortaleza, 25 de setembro
de 2012.
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