(Igreja de Água Fria, no Recife)
Para Carlos Aranha
Estava ouvindo Handel no som do
carro e de repente tive uma experiência rara. Me veio a lembrança das manhãs de
domingo em Água Fria, o primeiro bairro em que morei no Recife. Bem cedinho, os
fiéis eram chamados para a missa ao som da música mais bonita feita para o
louvor de Deus. Eu não ia à missa, mas acordava feliz com a harmonia barroca
que me prometia um longo dia de folga com direito a ver as moças passando para
a igreja, um almoço melhorado e uma matinê com filme de caubói ou uma comédia
com Jerry Lewis. Até hoje agradeço ao Cônego Jaime Diniz, pastor da paróquia de
Água Fria, por me ter dado de presente esse conjunto de imagens que emerge em
minha memória toda vez que ouço a música triunfante de Handel.
A memória é um espaço mágico onde
passado e presente se fundem para formar um outro tempo em que descobrimos uma
emoção nova, depurada, que abre uma clareira dentro de nós. Uma clareira onde
não cabe saudade ou esperança. Um lugar fugidio, uma chispa que, apesar de
intensa, depressa desaparece. E mesmo que o episódio relembrado permaneça no
pensamento, a emoção se esvai para somente voltar quando outra chispa vier nos
visitar.
Não gosto de começar uma história
dizendo “no meu tempo...” Dá a impressão que o tempo presente não é meu. O que
não é verdade. Todo tempo é meu. O passado, o presente e também o futuro, pois
toda vez que faço planos estou vivendo um tempo que ainda virá. Mas não tenho
nenhum pudor em começar uma história falando “naquele tempo”. Pois me faz bem
falar das coisas que vivi e das que não vivi, mas ouvi falar. Das que não vivi,
não ouvi falar, mas que inventei a partir de restos de memória dispersos que
juntei para inventar alguma coisa que me falta no passado.
A memória é um luxo. E a melhor
forma de cuidar dela é respeitar os seus movimentos. Deixar que ela nos invada
e pegue de surpresa o ser incauto e distraído que dorme em nós. Respeitar,
principalmente, os momentos em que ela nos falta, pois é apenas um aviso de que
um dia nos abandonará. Mas enquanto estiver aí, uma música no som do carro
sempre poderá nos enviar para o som antigo que nos acordava desde um
alto-falante no topo da torre de uma igreja de subúrbio.
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