Hoje meu dia dedicarei às
mulheres. A primeira delas é Regine Limaverde, que me mandou exemplar
autografado de seu novo livro, Eternas
lanternas do tempo. Não pude comparecer à livraria onde ocorreu o
lançamento (precisei visitar um doente, pai de um amigo). A segunda é Krisztina
Jakabos. E que as une? Nada, a não ser a circunstância de serem minhas amigas e
poetisas.
Então voltemos a Regine, que é
brasileira (cearense) e mora pertinho de mim: separam-nos apenas uns dez quilômetros.
Doutora em Microbiologia, entende de seres minúsculos (como os homens), mas
também de seres maiúsculos (como os deuses). E traduz todo o seu entendimento
em pérolas: “E eu te olhava / te adorando como a um Deus / me esquecendo. Que
loucura (!) / que és humano como eu”.
E Krisztina Jakabos? De quem se
trata? Por que aparece aqui? Darei respostas precisas. Fui ao Velho Mundo (nem
sei se ainda se usa esse termo), em setembro passado. E levei comigo Regine.
Não, não levei a poetisa; levei as Eternas
lanternas. Cheguei a Budapeste no meio da manhã. Mal visitei o quarto do
hotel, saí logo a caminhar. Queria conhecer o Rio Danúbio, o Castelo de Buda, a
Praça dos Heróis. Fotografei águas novas, paredes antigas, histórias e
geografias. Caminhei, marchei, andei, errei. Ufa!
Cansado de ir e vir, abanquei-me
para um café ou um gole de álcool. Almoçaria mais tarde. E avistei umas pernas
em passo lento. Segui-as até onde foi possível alcançá-las com a vista, sem
sair do lugar. A dona das pernas deve ter percebido o movimento de meus
sentidos, que mulher tudo percebe. Abri o impresso de Regine: “Voltei à nossa
casa para buscar tua última vestimenta”. Saltei páginas, aleatoriamente: “De
onde surgiste? / Dos trigais maduros? / Das dálias perfumadas? / Das noites ou
alvoradas?”. Pois logo, e
misteriosamente, sentou-se, ao meu lado, a dona daquelas pernas budapestinas. Assustado
(ou perplexo) e, ainda com a poesia diante do nariz, virei o rosto para ela.
Pus-me a ler, em voz alta: “Para onde iremos sem corpo?” Ela sorriu e falou.
Nada entendi. Ou entendi o sorriso. Foi quando me lembrei de Lima Barreto,
daquele saborosíssimo “O homem que sabia javanês”.
Logo depois, arranjei um
tradutor. Como isto se deu? Dirigi-me a uma livraria, pela mão de Krisztina
(com gestos, ela se dissera escritora). Apresentou-me Miklós Szabo. Os leitores
dirão: “Estás a nos enganar, pois disseste que hoje o dia seria só das
mulheres”. Infelizmente (ou felizmente), nem só de mulheres vivem os homens.
Pois aquele Miklós é brasileiro. Minto. Nasceu na Hungria e viveu no Brasil por
alguns anos. E até sabia de mim: “Li um livro seu”. Deve ter mentido, pois
mentiroso é, como pude constatar. Entretanto, não me estenderei neste assunto,
para não fugir do meu propósito original de dar notícia da obra de Regine
Limaverde. E para não falar de homem, principalmente de mau caráter.
Aqui começa a verdadeira trama
(não direi macabra, que não sou exagerado) desta crônica: Miklós me ludibriou à
vontade, roubou-me cerca de mil euros e ainda me levou a belíssima Krisztina
Jakabos. “Ora, ora!” – dirão os leitores. “Que nos interessam os seus
fracassos amorosos, as suas estroinices imaginárias, as suas petas de
escritorzinho sem talento?” Mesmo assim, não deixarei de ser fiel aos fatos.
Fomos a um restaurante e lá combinamos o seguinte: o rapaz (desempregado) seria
o tradutor de nossas falas (minhas e da moça). Mostrou-se tão satisfeito com o
“emprego” (garantia de refeições, passeios e boas companhias) que se ofereceu
para traduzir os poemas de Regine. Tradução oral, sem compromisso com a poética
ou a literariedade. Concordei com a proposta. Afinal, os poemas não me pertenciam
e eu não representava a poetisa.
Passamos mais de uma hora no
restaurante. À noite, perdemos (ou perdi) mais duas ou três horas em conversação
luso-magiar. E outras tantas nos dias seguintes. Não sei se Miklós traduziu “corretamente”
os tantras de minha conterrânea. Talvez não fosse (ou não seja) capaz de
inventar poesia. Seja como for, Krisztina sorria, batia palmas, demonstrava
alegria de ouvir os versos traduzidos. “Ela está gostando muito da arte de sua
amiga”, dizia-me ele. O interesse dele seria outro. Sim, leitores, ele queria a
bela húngara. E, no final, descobri tudo: Ele me traiu, me fez de palhaço, me
arruinou. Todas as minhas palavras ele modificava. “Estou gostando de você”
virou “Desculpe, mas não aprecio mulher”. Como eu soube disso? Ao nos
despedirmos, ela me entregou um escrito (espécie de carta), no qual relatava a
sua decepção comigo. Consegui a tradução no Brasil, com outro filho da Hungria.
Porém, disso ou dele não direi mais uma só palavra. A seguir, vieram as
mensagens por correio eletrônico.
Como se pode verificar, meu “amigo
da onça” europeu guarda alguma semelhança com o personagem de Lima Barreto. De
certa forma, agiu à maneira de Castelo, que se fez passar por professor de
javanês. Pois Miklós (que deve ter mesmo noções de sua língua) me embaiu
direitinho. Comportou-se tal e qual o Castelo, em relação ao coitado Manuel
Feliciano Soares Albernaz, o Barão de Jacuecanga.
Apesar
de tudo, estou feliz. Deixei cópia da publicação de Regine com Krisztina e
passei a me corresponder com a moça de Budapeste. Prometi-lhe um mês (do
próximo ano) de aventuras pela Amazônia e uma tradução de seus poemas para o
português. E sabem qual o título que ela escolheu (ofereci-lhe cinco
opções)? Vejam só: Quero a vida na qual estavas. É o título de um poema de Regine
Limaverde, com epígrafe de Linhares Filho. Querem ler o poema? Digo-lhes um
verso: “Que vida é essa que escapa feito areia por nossas mãos?”
Fortaleza, 12 de outubro de
2012.
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