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quinta-feira, 25 de outubro de 2012

Da leitura de Ádlei, Cagiano, Whisner e Kelmer (Nilto Maciel)





Ganhei, recentemente, três livros. Como não me sinto mais disposto a resenhar tudo o que leio, darei apenas notícia deles. Um registro, como faziam os antigos. Dolor Barreira (1893 1967), o maior historiador da Literatura Cearense, se valeu muito desse tipo de anotação, para construir o monumento de quatro grossos volumes intitulado História da Literatura Cearense. Não tenho tais pretensões. Sobretudo, porque não me confino à província de José de Alencar.
       Os três impressos recebidos são Canção para despertar os pássaros & novos planos de voo (São Paulo: Agbook, 2012), do mineiro Ádlei Duarte de Carvalho; Moenda de silêncios (São Paulo: Dobra Editorial, 2012), de Ronaldo Cagiano e Whisner Fraga, também nascidos em Minas; e Guia de sobrevivência para o fim dos tempos (São Paulo: Arte Paubrasil, 2012), do cearense Ricardo Kelmer.
Peço desculpas aos quatro amigos (só não conheço pessoalmente o Fraga) por indisposição mental e por incapacidade crítica. Uma se torna cada vez mais incurável, com o tempo; a outra não terei como superar.

Canção para despertar os pássaros & novos planos de voo
Sou próximo das três publicações anteriores de Ádlei. Recebi-as pelo correio. Somos ainda afeitos a “despachar encomendas”, como se dizia. Além disso, mantemos correspondência. Não aquela dos correios, mas a dos e-mails. E tudo isto é tão salutar que, numa das mensagens, ele anunciou: “Nilto, quero conhecê-lo pessoalmente. Estarei em Fortaleza a partir de...” Marcamos dia, hora e local para o encontro. Hospedara-se num hotel à beira-mar. “Estarei de boné verde, bermuda amarela, camisa azul”. Fui, mais branco do que as nuvens. Ora, deixemos no passado aquele mútuo achamento.
Canção para despertar os pássaros & novos planos de voo, como o título indica, é de versos. Não há índice, mas contei os poemas. São 34. O primeiro intitula-se “O dia em que perdi as asas”. O poeta é pássaro ao contrário: “As cantigas que queria ter cantado / os voos que teria empreendido / os sonhos que deveria ter trilhado / (...) morreram naquele tiro infeliz que dei / na infância / e derrubou o passarinho”.
            Os temas mais cultivados por Ádlei são os da infância, do passado, do tempo da inocência. Os títulos mesmo evidenciam isso: “Canção da infância”, “A cidade das casas abertas”, “Sobre o segredo da força” e outros. Neste, o poeta fala à mãe, velha, doente: “Não importa que o tempo / queira lavar a tua memória. / Eu te abraçarei com ternura / e a cada dia mais forte / até chegar o momento / em que te revelarei a história / da criança feliz que fui / agarrado à tua mão”.
Voltemos aos títulos: “O derradeiro voo do poeta” (toda criança sonha em voar), “Crianças”, “O menino e o mar”, “Pégaso” (“Em tenho também o meu Pégaso. / Agarrado à sua crina / nos meus sonhos de menino, / atravessei o universo / sem temor ao destino”.) e “Voar”. Não, Ádlei não se limita aos motivos da infância (ora, não se pode falar em limite, quando se pensa em poesia). Os assuntos de Ádlei são os de todo poeta: a dor, a angústia, a saudade (“Lembra-te das estrelas perdidas / que disseram, depois, que eram aviões?”), a consciência da finitude, a natureza e a própria poesia.

Moenda de silêncios
De Ronaldo Cagiano chegou ao meu endereço Moenda de silêncios. Que tem um subtítulo: Encontros & desencantos na metrópole. É novela composta a quatro mãos, com Whisner Fraga. Nem imagino como isso é possível. Acho que comigo não daria certo. Pois mal consigo escrever sozinho.
A obra está dividida em 18 capítulos. O primeiro é “Neons, silêncio e estilhaços na alma”. Como nas antigas novelas europeias (herdeiras do teatro medieval), após o título vem indicação de cena, assim: “Sumido, anêmico, quase uma sombra esgueirando-se entre os edifícios, o sol anunciava mais uma manhã cinzenta e desigual”. E o primeiro personagem entra em cena, a falar a outro: “Não há nada a perder, meu amigo”. Lamenta-se da vida, da “mesmice rabugenta”, das “pessoas estancadas”, do passado. Na fala seguinte (também antecedida de travessão), o outro replica e “identifica” para a platéia ou o leitor o seu interlocutor: Murillo. Na segunda fala, este nomeia o parceiro: Fabiano. Na réplica, este envolve o leitor (espectador) no cenário mais amplo do drama em representação: a cidade de São Paulo. Assim: “Nos primeiros quinhentos metros da Avenida Paulista você vai ver mais coisas e passar por mais pessoas do que todas as que você viu em toda a sua vida”. O capítulo se encera com dois parágrafos distintos. Num, entre parênteses e em itálico, um dos seres fala para si mesmo (subentende-se), como fazemos nos instantes que antecedem a chegada do sono. No outro (seis linhas), o “narrador onisciente” encerra a cena: “Um silêncio mineral trouxe uma paz no quarto. Fabiano já estava dormindo” (...). O segundo capítulo é uma narração de Murillo. Nele surge terceira personagem: Susana. E outros seres do passado: pais, irmãos, parentes, amigos.
A novela de Cagiano e Whisner nos transporta não apenas à “cidade que não dorme”, à “imensa estepe desconfortável”, “aquele pomar de ferro e cimento”, ela também nos conduz ao interior do Brasil, ao outro Brasil, a Cataguases, Granjaria, o rio Pomba e toda uma galeria de seres humanos de aparente pequenez.

Guia de sobrevivência para o fim dos tempos
Dos três, o mais encorpado é o de Ricardo Kelmer. São 10 contos, mais ou menos longos. Em “O íncubo”, o narrador “misterioso” (ou nem tanto, pois o título da narrativa afasta qualquer mistério ou surpresa) “fala” a uma personagem sem nome explícito: “não esqueça”, “o seu chão”, “você anda meio desleixada?”, “minha querida”, etc. Como um anjo da mitologia cristã, faz a anunciação do “pecado” a ser cometido pela mulher: “você anseia por essa visita” (do íncubo, demônio masculino que abusava das mulheres durante o sono). Ou seja, os dois “personagens” (mulher e íncubo) são “apresentados” ao leitor como possibilidades. A narração se dá no futuro (verbos): “Ele virá como num sonho mas será real”.
Outra peça que lembra os contos de mistério da chamada literatura gótica ou fantástica intitula-se “A vertigem”. Desde a fórmula clássica de apresentação do narrador ao leitor: “Os fatos que agora relatarei aconteceram há muito tempo”. Ou seja, o narrador se apresenta como protagonista ou testemunha de fatos “estranhos”. Ao se apresentar, comprova a veracidade do que relata. Pois sobreviveu aos fatos.
A tapeçaria ficcional de Ricardo Kelmer é de feitio neoclássico e romântico. Isto é, o escritor não se deixou seduzir pela moda de um realismo pobre, frouxo, feito de cópia de cópia de reportagens. Seus temas preferidos são os do mistério, os da alma. Apesar disso, é também um realista. Contraditório? Talvez. Basta ler outra peça maiúscula: “Quando os homens não voltam para casa”. O título é dos nossos tempos, os personagens também. No entanto, há um quê de “antigo” nas entrelinhas. Há uma princesa presa num quadro (num bosque). E ela vive, é real. Esse olhar para dentro das pessoas dá à ficção de Kelmer lugar de destaque na moderna literatura brasileira. Em certo sentido, lembra Lygia Fagundes Telles, outra ficcionista singular. Não se trata de cópia, no entanto. Os seres de talento não copiam, recriam.
Fortaleza, 24 de outubro de 2012.
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