Ganhei,
recentemente, três livros. Como não me sinto mais disposto a resenhar tudo o
que leio, darei apenas notícia deles. Um registro, como faziam os antigos.
Dolor Barreira (1893 – 1967),
o maior historiador da Literatura Cearense, se valeu muito desse tipo de anotação,
para construir o monumento de quatro grossos volumes intitulado História da Literatura Cearense. Não
tenho tais pretensões. Sobretudo, porque não me confino à província de José de
Alencar.
Os três
impressos recebidos são Canção para
despertar os pássaros & novos planos de voo (São Paulo: Agbook, 2012),
do mineiro Ádlei Duarte de Carvalho; Moenda
de silêncios (São Paulo: Dobra Editorial, 2012), de Ronaldo Cagiano e Whisner
Fraga, também nascidos em Minas; e Guia
de sobrevivência para o fim dos tempos (São Paulo: Arte Paubrasil, 2012), do
cearense Ricardo Kelmer.
Peço
desculpas aos quatro amigos (só não conheço pessoalmente o Fraga) por
indisposição mental e por incapacidade crítica. Uma se torna cada vez mais
incurável, com o tempo; a outra não terei como superar.
Canção
para despertar os pássaros & novos planos de voo
Sou
próximo das três publicações anteriores de Ádlei. Recebi-as pelo correio. Somos
ainda afeitos a “despachar encomendas”, como se dizia. Além disso, mantemos
correspondência. Não aquela dos correios, mas a dos e-mails. E tudo isto é tão
salutar que, numa das mensagens, ele anunciou: “Nilto, quero conhecê-lo
pessoalmente. Estarei em Fortaleza a partir de...” Marcamos dia, hora e local
para o encontro. Hospedara-se num hotel à beira-mar. “Estarei de boné verde,
bermuda amarela, camisa azul”. Fui, mais branco do que as nuvens. Ora, deixemos
no passado aquele mútuo achamento.
Canção para despertar os pássaros &
novos planos de voo, como o título indica, é de versos. Não há
índice, mas contei os poemas. São 34. O primeiro intitula-se “O dia em que
perdi as asas”. O poeta é pássaro ao contrário: “As cantigas que queria ter
cantado / os voos que teria empreendido / os sonhos que deveria ter trilhado /
(...) morreram naquele tiro infeliz que dei / na infância / e derrubou o
passarinho”.
Os temas mais cultivados por Ádlei são os da infância, do
passado, do tempo da inocência. Os títulos mesmo evidenciam isso: “Canção da
infância”, “A cidade das casas abertas”, “Sobre o segredo da força” e outros.
Neste, o poeta fala à mãe, velha, doente: “Não importa que o tempo / queira
lavar a tua memória. / Eu te abraçarei com ternura / e a cada dia mais forte /
até chegar o momento / em que te revelarei a história / da criança feliz que
fui / agarrado à tua mão”.
Voltemos
aos títulos: “O derradeiro voo do poeta” (toda criança sonha em voar),
“Crianças”, “O menino e o mar”, “Pégaso” (“Em tenho também o meu Pégaso. /
Agarrado à sua crina / nos meus sonhos de menino, / atravessei o universo / sem
temor ao destino”.) e “Voar”. Não, Ádlei não se limita aos motivos da infância
(ora, não se pode falar em limite, quando se pensa em poesia). Os assuntos de
Ádlei são os de todo poeta: a dor, a angústia, a saudade (“Lembra-te das
estrelas perdidas / que disseram, depois, que eram aviões?”), a consciência da
finitude, a natureza e a própria poesia.
Moenda
de silêncios
De Ronaldo
Cagiano chegou ao meu endereço Moenda de
silêncios. Que tem um subtítulo: Encontros
& desencantos na metrópole. É novela composta a quatro mãos, com Whisner
Fraga. Nem imagino como isso é possível. Acho que comigo não daria certo. Pois
mal consigo escrever sozinho.
A obra
está dividida em 18 capítulos. O primeiro é “Neons, silêncio e estilhaços na
alma”. Como nas antigas novelas europeias (herdeiras do teatro medieval), após
o título vem indicação de cena, assim: “Sumido, anêmico, quase uma sombra
esgueirando-se entre os edifícios, o sol anunciava mais uma manhã cinzenta e
desigual”. E o primeiro personagem entra em cena, a falar a outro: “Não há nada
a perder, meu amigo”. Lamenta-se da vida, da “mesmice rabugenta”, das “pessoas
estancadas”, do passado. Na fala seguinte (também antecedida de travessão), o
outro replica e “identifica” para a platéia ou o leitor o seu interlocutor:
Murillo. Na segunda fala, este nomeia o parceiro: Fabiano. Na réplica, este
envolve o leitor (espectador) no cenário mais amplo do drama em representação:
a cidade de São Paulo. Assim: “Nos primeiros quinhentos metros da Avenida
Paulista você vai ver mais coisas e passar por mais pessoas do que todas as que
você viu em toda a sua vida”. O capítulo se encera com dois parágrafos
distintos. Num, entre parênteses e em itálico, um dos seres fala para si mesmo
(subentende-se), como fazemos nos instantes que antecedem a chegada do sono. No
outro (seis linhas), o “narrador onisciente” encerra a cena: “Um silêncio
mineral trouxe uma paz no quarto. Fabiano já estava dormindo” (...). O segundo
capítulo é uma narração de Murillo. Nele surge terceira personagem: Susana. E
outros seres do passado: pais, irmãos, parentes, amigos.
A
novela de Cagiano e Whisner nos transporta não apenas à “cidade que não dorme”,
à “imensa estepe desconfortável”, “aquele pomar de ferro e cimento”, ela também
nos conduz ao interior do Brasil, ao outro Brasil, a Cataguases, Granjaria, o
rio Pomba e toda uma galeria de seres humanos de aparente pequenez.
Guia de
sobrevivência para o fim dos tempos
Dos
três, o mais encorpado é o de Ricardo Kelmer. São 10 contos, mais ou menos
longos. Em “O íncubo”, o narrador “misterioso” (ou nem tanto, pois o título da
narrativa afasta qualquer mistério ou surpresa) “fala” a uma personagem sem
nome explícito: “não esqueça”, “o seu chão”, “você anda meio desleixada?”,
“minha querida”, etc. Como um anjo da mitologia cristã, faz a anunciação do
“pecado” a ser cometido pela mulher: “você anseia por essa visita” (do íncubo,
demônio masculino que abusava das mulheres durante o sono). Ou seja, os dois
“personagens” (mulher e íncubo) são “apresentados” ao leitor como
possibilidades. A narração se dá no futuro (verbos): “Ele virá como num sonho
mas será real”.
Outra
peça que lembra os contos de mistério da chamada literatura gótica ou
fantástica intitula-se “A vertigem”. Desde a fórmula clássica de apresentação
do narrador ao leitor: “Os fatos que agora relatarei aconteceram há muito
tempo”. Ou seja, o narrador se apresenta como protagonista ou testemunha de
fatos “estranhos”. Ao se apresentar, comprova a veracidade do que relata. Pois
sobreviveu aos fatos.
A
tapeçaria ficcional de Ricardo Kelmer é de feitio neoclássico e romântico. Isto
é, o escritor não se deixou seduzir pela moda de um realismo pobre, frouxo,
feito de cópia de cópia de reportagens. Seus temas preferidos são os do mistério,
os da alma. Apesar disso, é também um realista. Contraditório? Talvez. Basta
ler outra peça maiúscula: “Quando os homens não voltam para casa”. O título é
dos nossos tempos, os personagens também. No entanto, há um quê de “antigo” nas
entrelinhas. Há uma princesa presa num quadro (num bosque). E ela vive, é real.
Esse olhar para dentro das pessoas dá à ficção de Kelmer lugar de destaque na
moderna literatura brasileira. Em certo sentido, lembra Lygia Fagundes Telles,
outra ficcionista singular. Não se trata de cópia, no entanto. Os seres de
talento não copiam, recriam.
Fortaleza,
24 de outubro de 2012.
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