I
Enquanto
as universidades e editoras portuguesas e brasileiras, praticamente, só estudam
e publicam autores africanos lusodescendentes – com as exceções de praxe, na
área editorial, como a Editorial Caminho, de Lisboa, que tem tradição na área
–, pouco se lê sobre romancistas, contistas e poetas africanos autóctones ou
mestiços que utilizam a Língua Portuguesa como meio de expressão. E, no
entanto, em poucos anos, se a Língua Portuguesa – a língua do invasor e do
colonizador – quiser sobreviver no continente africano – e com ela todo o
legado lusófono –, será mesmo dos autores autóctones que dependerá.
Esse
incompreensível silêncio – que reflete, pelo lado português, segundo o
professor Patrick Chabal, do King´s College de Londres, certa saudade
colonialista ainda não superada e, pelo lado brasileiro, descomunal
desconhecimento em relação a assuntos africanos – é o que explica que um livro
como Emerging Perspectives on Ungulani Ba
Ka Khosa: prophet, trickster, and provacateur, preparado pelo professor
Niyi Afolabi, ainda não tenha sido editado no Brasil nem em Portugal. E que,
para lê-lo, tenhamos de recorrer à edição da Africa World Press, Inc., com sede
em Trenton, New Jersey, EUA, e em Asmara, na Eritreia, país do Nordeste da
África, antiga colônia italiana, às margens do Mar Vermelho, que se separou da
Etiópia em 1991.
Pouco
conhecido do público-leitor brasileiro, Khosa (1957) não teve até hoje obra
publicada no Brasil, mas esteve em São Paulo em novembro de 2010 para
participar de um encontro na Casa das Áfricas e de um debate na Biblioteca de
São Paulo sobre “O negro na literatura internacional”, que teve a mediação de
Carmen Lucia Tindó Secco, doutora em Literatura Brasileira e professora de
Literaturas Africanas na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Trata-se
de um dos mais importantes autores moçambicanos de sua geração, ganhador do
Prêmio José Craveirinha de 2007 por seu livro Os Sobreviventes da Noite. Outro galardão que atesta a qualidade de
sua obra é o Grande Prêmio de Literatura Moçambicana de 1990 por Ualalapi, que foi assinalado como um dos
cem melhores livros africanos do século XX. No Brasil, Khosa já havia estado em
1987 para participar do lançamento da antologia Sonha Mamana Africa, preparada pela professora e jornalista
Cremilda Medina de Araújo, da Universidade de São Paulo (USP).
Nascido
em Inhaminga, província de Sofala, Ungulani Ba Ka Khosa é o nome tsonga – grupo
étnico do Sul de Moçambique – de Francisco Esaú Cossa, bacharel em História e
Geografia pela Faculdade de Educação da Universidade Eduardo Mondlane, de
Maputo, professor de carreira e atual diretor do Instituto Nacional do Livro e
do Disco, de Moçambique. Khosa também exerceu a função de diretor-adjunto do
Instituto Nacional de Cinema e Audiovisual de Moçambique, participando na
elaboração de roteiros e jornais cinematográficos. Filho de pais enfermeiros,
Khosa completou os estudos secundários na Zambézia e tornou-se professor em
1978.
É
autor de seis livros, Ualalapi
(1987), Orgia dos Loucos (1990), Histórias de Amor e Espanto (1993), No Reino dos Abutres (2001), Os Sobreviventes da Noite (2005) e Choriro (2009). Co-fundador da revista
literária Charrua, na década de 90,
tem escrito crônicas e artigos para vários jornais africanos. Membro da
Associação dos Escritores Moçambicanos, recebeu ainda o prêmio Gazeta de Ficção
Narrativa (1988), além de ter sido homenageado em 2003 pela Comunidade dos
Países de Língua Portuguesa (CPLP).
II
Essa
vasta obra justifica o livro que Niyi Afolabi, doutor em Estudos Africanos e
Portugueses pela Universidade de Wisconsin-Madison e professor de Literaturas
Brasileira, Ioruba e de Estudos da Diáspora Africana da Universidade do Texas,
de Austin, EUA, preparou, reunindo quinze ensaios escritos por estudiosos de
várias partes do mundo, além de entrevistas e excertos de textos do autor. Na
maioria, os textos estão em inglês – inclusive, excertos dos livros –, mas há
seis ensaios em português.
Entre
esses, destacam-se “Transculturação e representatividade lingüística em
Ungulani Ba Ka Khosa: um comparatismo da
solidariedade”, de Nataniel Ngomane, professor do Departamento de
Lingüística e Literatura da Universidade Eduardo Mondlane, de Maputo, doutor em
Letras pela Universidade de São Paulo (USP), e “O outro na representação da
identidade nacional nas obras de Mia Couto, Suleiman Cassamo e Ungulani Ba Ka
Khosa”, de Christoph Oesters, doutor pela Universidade de Utrecht, Holanda, com
a tese “Figuras do Outro: identidades pós-coloniais no romance moçambicano
contemporâneo” (2005).
Os
demais ensaios são de Ana Mafalda Leite, professora de Literatura Africana
Lusófona da Universidade de Lisboa, António Belchior Vaz Martins, autor de Teoria e Práticas de Análise da Narrativa:
as mitologias apocalípticas e Ualalapi de Ungulani Ba Ka Khosa (2004),
Daniela Neves Lima, professora da Pontifícia Universidade Católica (PUC), de
Belo Horizonte, e Ebenezer Adedeji Omoteso, coordenador de Estudos Portugueses
no Departamento de Línguas Estrangeiras da Universidade Obafemi Awolowo, da
Nigéria.
Além
da introdução “Quem tem medo de Ungulani Ba Ka Khosa?”, de Niyi Afolabi,
igualmente traduzida para o português, há estudos de Jared Banks, doutor em
Línguas e Literaturas Africanas pela Universidade de Wisconsin-Madison,
Gilberto Matusse, professor do Departamento de Lingüística e Literatura da
Universidade Eduardo Mondlane, de Maputo, Anne Sletsjoe, professora de
Literatura Portuguesa da Universidade de Oslo, Noruega, Sophia Beal, doutoranda
em Estudos Portugueses e Brasileiros pela Universidade Brown, EUA, Sunday
Bamisile, doutorando em Literatura Comparada pela Universidade de Lisboa, e do
próprio organizador do volume.
III
Como
se vê por aqui, Khosa é um autor já largamente estudado por críticos de outras
línguas. E que há muito já deveria ter sido editado no Brasil. Aliás, desde o
seu primeiro livro, Ualalapi, romance
histórico e primeira obra de ficção que se dedica exclusivamente ao passado
colonial de Moçambique e conta a ascensão de Ngungunhane, imperador de Gaza,
famoso pela resistência que opôs aos portugueses ao final do século XIX, até o
fim de seu império.
Como
observa Oesters, o livro é construído a partir de fragmentos históricos,
comentários de oficiais portugueses envolvidos na campanha contra o líder
africano. São seis contos que acabam por reconstituir na imaginação episódios
daquele período, formando um romance. O importante, porém, é que, ao contrário
do que comumente se pode imaginar, o livro não apresenta Ngungunhane como um
“grande líder” nem se preocupa em relatar seus possíveis feitos históricos
contra a violência do domínio colonial, como foi feito no período
pós-independência (1975). “Em vez disso, dedica-se muito mais a uma
representação de Ngungunhane que corresponde à realidade histórica, mostrando a
imagem de um tirano cruel em relação a outros povos africanos, mas também para
com seu próprio povo”, diz Oesters.
Oesters
observa que o “Outro” na obra de Khosa aparece na forma dos “brancos, do outro
lado do mar”, mas em breves referências. Numa delas, refere-se à morte de
Ngungunhane no exílio “em roupas que sempre rejeitara e no meio da gente da cor
do cabrito esfolado que muito se espantara por ver um preto”.
IV
Já
Nataniel Ngomane, em seu ensaio, faz um paralelo entre a obra de Khosa e a dos
autores latino-americanos do boom, a
partir da constatação de que as culturas de ambos os lados são historicamente
mestiças, “como produto do contato entre elementos indígenas – em si já
bastante diversificados –, africanos e aluviões imigratórios europeus e
asiáticos, na América Latina, e de elementos indígenas – não menos
diversificados que aqueles –, árabes, asiáticos e europeus em Moçambique”.
Ngomane
ressalta que essa situação vem sendo explorada por narrativas como as de Khosa
e de Mia Couto que, “no intuito de representar a conjugação dos imaginários e
atitudes aí presentes, acabam por configurar processos culturais diversos”.
Para tanto, vale-se da já clássica obra Contrapunteo
cubano del tabaco y el azúcar (Havana: Letras Cubanas, 1991), de Fernando
Ortiz (1881-1969), publicada pela primeira vez em 1940, tão estudada no
Departamento de Letras Modernas da USP, mas que, incompreensivelmente, ainda
está à espera de publicação por editora brasileira.
Ngomane
ressalta que, além de utilizar termos de origem bantu, “desconhecidos da
maioria dos leitores em português, Khosa incorpora em sua linguagem a descrição
de universos culturais a que esses termos se vinculam”. Ou seja, Khosa salpica
seu texto com expressões verbais de origem bantu, mas o faz de uma maneira mais
palatável ao leitor, explicando os termos no próprio texto, sem recorrer a um
glossário no final do livro ou a notas de rodapé.
V
Obviamente,
ninguém é contra que professores de outros mundos não lusófonos se preocupem em
estudar as literaturas africanas de expressão portuguesa. Pelo contrário. O que
se lamenta é que tanto em Portugal como no Brasil se dê tão pouco espaço aos
escritores africanos autóctones que se utilizam da língua portuguesa. Até
porque, como observa Perpétua Gonçalves em Português
de Moçambique: uma variedade em formação (Maputo: Livraria Universitária e
Faculdade de Letras da UEM, 1996), citada por Nataniel Ngomane, só uma minoria
em Moçambique que teve acesso à escola (25%) e que habita nos centros urbanos
(17%) fala português.
Como
o país é formado por muitas nações e 95% da população têm como língua materna
uma língua bantu, por enquanto, o Português serve como uma espécie de tertius (neutro) para a língua oficial,
já que, se um grupo étnico local quiser impor a sua língua como a predominante,
com certeza, irá causar insatisfação entre os demais. Mas, se Portugal e Brasil
continuarem de costas viradas para a África, não será difícil que Camões
(c.1524-1580) seja substituído por Shakespeare (1564-1616) em pouco tempo. Até
porque a África do Sul é logo ali. Depois, não digam que ninguém avisou.
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EMERGING PERSPECTIVES ON
UNGULANI BA KA KHOSA: PROPHET, TRICKSTER, AND PROVACATEUR, de Niyi
Afolabi (editor).Trenton, New Jersey/Asmara, Eritrea, Africa World Press,
Inc.,458 págs. , 2011, US$ 39,95.
Site:
www.africaworldpressbooks.com
E-mail: customerservice@africaworldpressbooks.com
E-mail: customerservice@africaworldpressbooks.com
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(*) Adelto
Gonçalves é doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo e
autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova
Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999;
São Paulo, Publisher Brasil, 2002) e Bocage – o Perfil Perdido (Lisboa,
Caminho, 2003). E-mail: marilizadelto@uol.com.br
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