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segunda-feira, 19 de novembro de 2012

O fim do mundo em quatro etapas (Nilto Maciel)





Fiz pedido esdrúxulo a quatro pupilas minhas: Camila Peçanha, Sofia Correia, Simone Farias e Manoela Ximenes. Para cada uma mandei recado curto: Venha ao colégio amanhã, às 14 horas. Assunto: fim do mundo. Vieram, assustadas. Conversamos a respeito de nós mesmos. Intrigada, uma delas quis dar fim ao mistério: Vamos ler A Guerra do Fim do Mundo? Dirigi-me à sala ao lado e trouxe quatro opúsculos: Leiam estes versos e voltem sábado, para a aula. E lhes entreguei, aleatoriamente, as seguintes obras: De viva voz, de Anderson Braga Horta; O cinza versos o azul, / O azul versus o cinza, de Marco Aqueiva; Uma prática para desconserto, de Sylvia Beirute; e Imanências, de Maria de Lourdes Alba. Expliquei: Será um sábado de poesia contemporânea.

              

Não lhes falei ainda, caros leitores, de minha oficina literária, que chamo de colégio? Em duas linhas: a pedido de umas estudantes de letras, instalei em minha casa um laboratório. Não cobro nada, porque não me sustento de literatura e, em contrapartida, me sinto feliz em poder comungar, com os meus semelhantes (às vezes, dou aulas também a cães e gatos e a outros seres de menor importância física), o prazer de ler e falar de livros.

Sábado as quatro chegaram, logo após meu almoço. Vesti-me de príncipe e me sentei no sofá, de olho em Pirandello: O falecido Mattia Pascal. Mais tarde, se tivesse ânimo, releria umas páginas dele. Lembrei-me da distante juventude, do dia em que li a primeira página do romance. Acionaram a campainha, pulei do assento e corri ao portão (quase tropecei na mesinha). Chegavam duas das garotas. Conduzi-as à sala: Leram tudo? Gostaram? Mal trocávamos as primeiras frases, ouvi de novo a sirena. Era a terceira. E logo chegou a quarta.

Escolhi Manoela para iniciar a sabatina. E, sem delongas, quis saber o que mais chamou a sua atenção na poesia de Anderson. Ela olhou para as colegas e folheou o impresso: Logo no início, encontrei Drummond. O poema “Balanço” tem muito daquela preocupação com o tempo vivido pelo poeta. Citou o primeiro verso: “O mundo não acabou. / O Reino prometido não chegou.” Refere-se ao alarme feito no final de 1999, de um provável fim do mundo. As outras permaneceram caladas, pois não conheciam Anderson.

Para dar mais vida ao encontro, preferi dizer duas palavras a respeito do poeta de Carangola: A poesia dele tem, sim, muito do poeta de Itabira. Daquela poesia feita do cotidiano. Quem não se lembra disso: “Não serei o poeta de um mundo caduco. / Também não cantarei o mundo futuro”? Todo bom poeta brasileiro, do final do século XX em diante, segue os passos (no bom sentido) de Drummond, de Bandeira, de João Cabral.

Com alguns minutos voltados para Anderson, levantei-me, de supetão, e apontei o dedo para Sofia. Queria saber de sua leitura do outro poeta, o paulista Marco Aqueiva. Não quis me alongar na apresentação: O objeto tem bom aspecto, duplo título, dupla capa e duplo conjunto de poemas. Bifronte, de um lado é O azul versus o cinza; do outro, O cinza versos o azul. A leitora examinou a coleção e se pôs a gaguejar: Gostei muito dos desenhos. As outras riram. Contive-me: Quer ler uns versos? Sim, queria. E leu: “Lá está ela / na esquina porta / fechada sob o toldo que mal beira / o peso das palavras repetindo-se infrenes”. Simone pediu licença para se pronunciar: Descritivo e narrativo, como se fosse prosa. Uma prosa quebrada, não linear, antigramatical. Aguardei uma conclusão. Não veio e arrematei: A dicção de Marco é pós-moderna. No ritmo da metrópole e da velocidade das máquinas eletrônicas, dos jogos de computador.

A tarde se arrastava pela metade. Pus-me a passear pela sala: Agora faremos uma pausa de quinze minutos. Olhei para elas e ordenei, paternalmente: Todas para a grande mesa posta. (Minha secretária aparecera à porta, minutos antes, e eu lhe fizera sinal com os dedos – tudo combinado –, para que servisse o lanche). Bebemos e mastigamos, à maneira cinematográfica da aristocracia europeia. Fiz um gesto de diretor de cinema afetado: Façamos de conta que estamos no palácio de Buckingham. Riram muito.

De volta à sala (de aula), autorizei Simone a iniciar a explanação relativa a Maria de Lourdes Alba. A jovem enrubesceu (como nos romances antigos) e assumiu ares de professora: A poetisa paulista iniciou-se na vida pública da literatura em 1999, com Ao redor das horas. As outras alunas demonstraram insatisfação. Camila Peçanha pediu a palavra: Como é a poesia dela? Tentei ajudar: Há momentos de expressão poética que lembram os grandes poetas. Como nos versos de “São Paulo antiga”. Pedi o volume a Simone e li: “Comecei a pensar um pouco / passou um bonde na avenida / refleti tão pouco / os chapéus embelezam os que passam”. Vejam o jogo de imagens e de palavras: o reflexo na lateral do bonde e a reflexão da poetisa (ou da narradora). Simone se exaltou: Vejo nela, porém, uma poesia que podemos chamar de prosaica. Sorri e tentei interromper aquele tipo de raciocínio: Não sejamos tão exigentes. A poesia se faz de todo jeito. Elas não me deram razão. Simone se mostrou a mais animada: Não concordo com o senhor. A poesia há de ser diferente da prosa, professor.

Olhei para o relógio: a tarde avançava celeremente. Ouvimos mais uns minutos a análise da poesia de Alba e convoquei Camila a encerrar o ciclo de “palestras”. Sem titubear, ela assim deu início à sua participação no colóquio: A poetisa que me coube ler não sei quem é. Talvez portuguesa. A publicação não traz nenhuma informação a esse respeito. Lembrei-lhe o poema de abertura do repertório: “se tiver sintomas de poema, aguente, / não resgate o orgulho, guarde, quando falar / com os outros, uma distância / de, pelo menos, um metro / fique em casa, não vá trabalhar, esqueça / rotinas graves, monólogos de rupturas, / a periferia de uma lição integral de intimidade, / não consulte o oráculo, des-”. Fui interrompido por Camila: a maneira de compor de Sylvia Beirute é bastante singular, pelo menos para nós do Brasil. Nada de chamar a atenção, de deixar o leitor de queixo caído, de causar impacto muito forte.

Convidei minhas discípulas para as palavras finais, pois a tarde se aproximava do fim. Manoela Ximenes beijou Anderson Braga Horta: Este é poeta da linha de frente. Posso ler outro poema dele? São só três versos. Será um haicai? Não sei. É assim: “Um raio de luz / voando / atarantado no quintal”. E o título? Uma beleza: “Borboleta amarela”. Bati palmas. As pequenas seguiram meu exemplo. Camila Peçanha se ergueu e abriu o livro de Sylvia Beirute: Fiquei maravilhada com “Dia dos namorados”. Uma das meninas gargalhou: Ela está apaixonada. Não sei, pois não a conheço tanto. Entretanto, se encabulou: Ouçam esta joia: “o amor / passou-se no tempo em que não havia medo. / não havia paredes subidas. / as manhãs era remotas como rosas”. Também me entusiasmei e minha exaltação contaminou minhas aprendizes. E nos abraçamos feito cinco crianças na ciranda do adeus.

E qual o motivo de ter trazido o falecido Mattia Pascal para essa tarde de vida e poesia? Nenhum. Foi só uma lembrança da juventude.
Fortaleza, 14 de novembro de 2012.
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