Cronista que se preza escreve pelo
menos uma crônica sobre passarinho. Esta não é bem uma regra, mas, digamos
conta pontos, acrescenta milhagem, é indicativa de que o escriba cronicou sobre
quase tudo, das pequenas ocorrências fortuitas da vida à existência efêmera de
seres emplumados. É sinal de que uma ponta indisfarçável de lirismo sempre
esteve incluída no seu horizonte de interesses. E o lirismo – isto também não é
uma regra, mas agrega respeitabilidade –, explícito ou embutido, salvo juízo em
contrário, é um componente primordial da boa crônica.
A culpa é de Rubem Braga, que conta em seu imbatível arsenal com pelo menos duas investidas memoráveis no reino dos passeriformes, até onde alcança minha turva memória. Desde então, citar pássaros, ainda que en passant, tornou-se questão de honra para os cultores desse gênero que, dizem, é produto genuinamente nacional, como a jabuticaba e a caipirinha.
Pois eu, mesmo me situando a anos-luz de distância de ser um bom cronista, tenho cá também minha história de passarinho. Antes devo esclarecer que sempre tive, com perdão do trocadilho, uma quedinha de asa por essas criaturas esvoaçantes, símbolos incontestes da liberdade, destinados a contemplar a vida das alturas e com salvo conduto para rumar em qualquer direção.
Tinha eu meus cinco anos quando me envolvi com meu personagem-passarinho? Se não era isso, era quase. Certo é que, naquele tempo, eu vivia a infância no interior. Não sei por quais torções do destino fui parar lá. Pindaíba da família? É bem provável. Uma vida mais barata, sob a proteção de avós e tios, todos de origem interiorana.
O fato é que um belo dia eu era o feliz proprietário de um passarinho, e tê-lo devidamente engaiolado foi, certamente, meu primeiro exercício de posse sobre alguém ou alguma coisa. Um pequeno Napoleão exercendo o poder sobre seu território. Eu costumava transportar minha assustada presa para cima e para baixo, ao sabor das minhas idiossincrasias, como quem lida com um brinquedo qualquer.
Como um menino vivendo na roça, não me faltava contato com outros espécimes. As noites eram pontilhadas por estrelas, mas também por vagalumes, pequenos pontículos fosforescentes hoje só existentes nas fabulações de Monteiro Lobato. Aquelas minúsculas aeronaves piscando na escuridão constituíam um dos mistérios insondáveis da infância, assim como as inatingíveis estrelas. Quem as acendia? De onde provinha sua luz?
Ao lado dos vagalumes, havia ainda os gafanhotos a preencher o parque temático da infância, na ausência absoluta de outras diversões. Eu estabelecia uma hierarquia de valores. Os gafanhotos mais importantes eram os maiores, aqueles que, ao alçar voo, exibiam um espetáculo de cores sob suas asas.
Mas desconfio que eu era uma criança razoavelmente malvada, sem que tivesse a noção de sê-lo. Pode ser que o que vou revelar agora seja muito forte e requeira frieza emocional do leitor. Como qualquer criança que se cansava de seus brinquedos, eu me enchia de meus gafanhotos, e isso era o bastante para me desfazer deles.
Usando a chama bruxuleante do candeeiro, tacava fogo neles, como um Torquemada, submetendo-os a sessões de fritura dignas de um naco de carne. O odor de guisado preenchia o ar.
Avisei que era chocante. Mas antes que você aponte seu dedo inquisidor, lembre-se que, numa escala de maldades típicas da infância, atear fogo em indefesos gafanhotos não fica muito atrás de abater pássaros a estilingadas, que vem a ser o hobby de muitos garotos de infância interiorana. Mas não eu. E posso jurar pela alma dos artrópodes que despachei desta pra melhor: jamais cometi qualquer passaricídio.
Não de forma voluntária. O pássaro que ganhei de presente, infelizmente, não veio com manual de instrução. Ninguém me avisou que aquele brinquedo, não sendo confeccionado de plástico ou madeira, carecia de manutenção; que devia comer e beber.
E assim, numa infausta manhã, meu pássaro jazia inerte na gaiola, tendo ao seu lado a presença vigilante de um grupo de formigas. Ninguém precisou me dizer que ele havia batido as asas. Vivenciei ali meu primeiro grande sentimento de perda. Uma angústia inenarrável me invadiu o peito. O sentimento opressivo só me abandonou depois de um pequeno ritual. Acomodei a pobre criatura numa pequena sepultura escavada com as próprias mãos, e ali depositei sua pequena carcaça inanimada.
A tristeza que sentia evaporou como num passe de mágica, mas não a certeza de que, um dia, serei convocado a prestar contas das pequenas infâmias que cometi na infância. Em algum lugar no céu, pequenas labaredas me esperam. Já posso sentir o calor consumindo minhas pequenas asas indefesas.