Acabo de ler o diário de
Nilto Maciel. Trata-se de anotações críticas sobre literatura, sem prejuízo, no
entanto, de confissões e questionamentos pessoais. Os cadernos compilados em Menos
vivi do que fiei palavras (Editora
Penalux, 2012), sem nomeação de dias e meses, estão datados de 1986 a 1992, período em que
o autor de Vasto abismo ainda vivia em Brasília. Pelo que
declara em algum trecho, abandonou de vez o exercício desses apontamentos.
Não quer mais saber do assunto. Publicar os velhos
compêndios em livro já lhe custou grande esforço, muita coragem. Basta!
Ao contrário de Nilto
Maciel, sempre li diários. Tenho gosto pela vida alheia, quando esquadrinhada
pelo próprio autor. Primeiro foi Kafka.
Depois, Sérgio Milliet e alguns outros escritores. Aprecio esse exercício
catártico, às vezes auto-imune, de exposição consciente. O diário de Anne Frank, por
exemplo, deixou forte impressão na minha juventude, na minha vida, tanto quanto
as anotações de viagem de Hermann Hesse e Graciliano Ramos. Isso sem falar nas
biografias, naquelas páginas em que se revelam particularidades e pormenores da
vida de uma pessoa tão distante de nós.
Também tive arroubos confessionais destilados em
cadernos escolares. Ou em folhas avulsas. Coisa de 20, 30 anos atrás, que
dificilmente irei publicar. Há outras prioridades. Mas, neste momento, não
pretendo me imiscuir naquilo que abandonei faz tempo. Agora basta a utilização
da primeira pessoa, com interferência direta. Prática que às vezes abomino e condeno. Exceto em romances e contos,
que não escrevo. E em situações como esta, previamente pensada.
O escritor Nilto Maciel, já
analisado por mim diversas vezes, é dos mais profícuos da moderna literatura
brasileira. Percorre todos os gêneros, sempre com o mesmo perfeccionismo que o
identifica desde Itinerário, publicado em 1974.
Isso talvez decorra do seu apreço pelos
livros e, sobretudo, da constância do hábito de leitura. Nilto escreve bem, lê
bem e sabe analisar uma obra literária como poucos. Seu estro não tem limites.
Fato esse, aliás, conhecido por todos aqueles que leem seus escritos. O elogio,
a essa altura, já se tornou lugar-comum.
Pois bem. Menos vivi do que
fiei palavras consegue
atingir uma culminância estilística de fazer inveja. O tratamento vocabular e a
estrutura frasal são notórios, considerando-se a perfeita
simetria da construção verbal. A linguagem é rica e
expressiva, sem ser piegas ou ultrapassada. (Há, entre nós, autores que
escrevem como se estivessem no século XVIII ou XIX.) O vocabulário empregado
confirma altos conhecimentos lexicográficos, sem nunca perder o foco do fato ou
do objeto narrado (descobri uma palavra que não conhecia: copelação.). E a temática, variada, é das melhores para um leitor
escritor: livros, autores, casas editoriais, academias, associações, sindicatos,
além da exposição crua de certos indivíduos e suas veleidades, mesquinharias, ilusões e desilusões
de toda sorte.
Como já mencionado, o grosso das notas se acomoda em considerações críticas
(nem sempre favoráveis) sobre romancistas, contistas, cronistas, jornalistas,
poetas, artistas plásticos, et alii. Poucos escapam da mirada corrosiva de Nilto
Maciel, que, noblesse oblige, não
deixa de lado fatos miúdos de sua vida
privada. Às vezes transpira e goteja partículas de medos, de dúvidas, de
incertezas, para entregar-se inteiro ao ato de contar histórias, agora reais,
presenciadas no cotidiano de uma vida cada vez mais medíocre e, às vezes, sem
sentido. (O desconforto do supranormal neste
mundo é gritante.)
Menos
vivi do que fiei palavras faz-se porta-voz também de sustos e inquietações, de aventuras e
desventuras do cidadão Nilto Maciel — homem comum, que trabalha, dirige
automóvel e tem obrigações sociais a cumprir. Consigna, por outro lado, uma
visão de mundo extraliterária (choro de criança, casa pequena, aparelho de tevê
ligado, pessoas dormindo na sala, etc.). Espécie de sombra a encobrir o criador
e, por contingência, dificultar o seu trabalho, toldar a sua solidão produtiva.
Nesse vaivém de símbolos e signos, a realidade se impõe e ameaça o universo que
lhe diz respeito, dentro de uma imagística
estritamente pessoal. E tudo é motivo de dor, angústia, sofrimento. Produzir
literatura já não basta. É preciso extrapolar a ficção e confiar a um
interlocutor silencioso o seu desassossego, as suas contradições. Poder
abrir-se, sem temor ou reserva, à confidência. Contar de suas andanças à caça
de editor, dos novos livros adquiridos, de suas reuniões sindicais, de suas
decepções com a vida lá fora, enfim.
E, assim, as
leituras e apontamentos vão abrangendo textos produzidos em outras línguas e
idiomas. Autores de vários países, embora “traduzidos” e “incompletos”. Todos
eles companheiros de jornada. Por outro lado, volta-se para a província e não
se faz de rogado, nem de bonzinho. Denuncia o poeta idiota e pedante, que não
lê poesia e se julga um novo Cruz e Sousa. O romancista que não consegue se livrar da incompetência, da falta de talento, e insiste. A escritora de infantojuvenil que
não consegue distinguir crônica de conto. E canta e decanta certa poetisa —
mulher belíssima e sensual —, mais pelas formas do corpo do que pelos versos.
Mas
o livro, para júbilo de quem realmente ama e conhece
o mundo das letras, traz no seu corpo de celulóide e sonho uma face bem
peculiar do autor de A rosa gótica: o
compromisso com a arte e o resultado de leituras e releituras dos clássicos e
dos não clássicos. Ali estão reunidos testemunhos sinceros de quem mais fiou
palavras do que viveu. Nilto Maciel entregou-se à literatura de corpo e alma e
fez dela um sacerdócio. E esse exercício permanente faz do nobre filho de
Baturité “um feiticeiro” que jamais será “devorado pelo próprio feitiço”.
Porque, se a vida é sonho, morrer é continuar
sonhando.
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João Carlos Taveira é poeta e crítico literário.
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