Descobri Yukio Mishima (1925-1970) num
volume bastante manuseado, pertencente ao ator e diretor teatral Jesiel
Figueiredo, ao tempo em que ele morava numa garagem nos fundos da casa de seus
pais à Avenida Princesa Isabel com a rua Prof. Zuza, em Natal.
O livro era “Confissões de Uma Máscara“, considerado então
uma obra de referência para homossexuais do mundo inteiro. Foi em 1968 ou 69,
não lembro ao certo, pois em matéria de datas sou tal qual o presidente Lula e
o Partido dos Trabalhadores em matéria de ética: ignoro ou não sei…
Vacinado contra o sensacionalismo, eu o
folheei, mas não li, apesar de conhecer o leitor sofisticado que era Jesiel,
sempre em dia com o que havia de novo, cuja biblioteca especializada em peças
teatrais e teorias cênicas e dramatúrgicas, constituia-se em precioso
repositório de tudo o que se fizera de excelente, do teatro clássico
greco-latino às vanguardas contemporâneas (Ionesco, Beckett, Arrabal etc).
Pensei que se tratasse de uma obra de proselitismo gay escrita por um japonês
ainda desconhecido no Brasil. E não fui adiante…
Na verdade, somente leria Mishima alguns
anos depois, no final dos anos setenta, após o seu rumoroso suicídio que, na
época, não teve quase nenhuma repercussão entre nós, apesar de tratar-se de um
Prêmio Nobel de Literatura. Curiosamente, não foi através dos livros, mas do
cinema, que descobri e mergulhei de cabeça no mundo mental e criativo de
Mishima, ao assistir no Cine Rio Grande a uma sessão vespertina de “O Marinheiro que caiu em Desgraça com o
Mar“, uma de suas obras-primas de paixão e violência incontida,
projetada para uma plateia de quinze ou vinte pessoas que foram saindo à medida
que o tempo passava.
A partir daí, obcecado pela complexidade
da sua obra, tornei-me uma espécie de mishimaníaco, lendo tudo o que ele
escrevera e o que fora escrito até então a seu respeito, como o extraordinário
ensaio de Marguerite Yourcenar. Importei da Espanha e Portugal os seus livros
que somente seriam publicados no Brasil, em escala comercial, nos anos oitenta,
pela Editora Brasiliense, que pôs ao alcance dos nossos leitores algumas de
suas obras mestras, como “O
Templo do Pavilhão Dourado” e a famosa tetralogia “O Mar da Fertilidade“,
evocatórias do mistério da condição humana e do prestígio do mal.
Nessa época eu já me tornara um grande
apreciador da literatura japonesa clássica e moderna, porém dos contemporâneos
o meu autor predileto era e continua sendo Osamu Dazai, que, a
exemplo de outros notáveis escritores japoneses, como o nobelino Kawabata,
também se suicidaria.
Escritor estranho, expoente de uma
cultura milenária, permanentemente obcecado pela ideia da morte voluntária,
desde a sua adolescência sentia Mishima ânsias de destruição e de
autodestruição, não pelo desejo mero e simples de impressionar, como ocorre com
alguns jovens, mas por uma condição intrínseca de sua natureza semelhante à de um onnagata, ou
seja, de uma criação resultante da união ilícita entre o sonho e a realidade,
segundo o seu perspicaz biógrafo inglês Henry Scott Stokes.
A propósito, o onnagata é um gênero de
ator muito apreciado em seu país, cuja formação exige-lhe anos de aprendizagem,
auto-sacrifício e abnegação; um tipo peculiar de ator que se especializa
na interpretação de papéis femininos, o que não faz dele um travesti, no
sentido que conhecemos, mas um homem capaz de transmitir com sutileza e grande
refinamento as complexas emoções femininas.
Escritor de formação clássica, devotado
ao culto do Imperador, logo descobri que tínhamos alguns pontos em comum, como
a necessidade de elegermos um mestre — ou vários –, no sentido de dispormos de
parâmetros e referenciais encarados como desafios a serem superados. Um desses mestres
nos era comum — o alemão Thomas Mann, que ainda aos catorze anos, no Assu,
elegi como um marco a ser de alguma forma ultrapassado…
Senti que estava diante de um autêntico
escritor. Um escritor para quem, de fato, a literatura existia e se
exprimia em linguagem de homem, concisa e autêntica, sem excrescências retóricas.
Exultei quando li o que ele escrevera em “Meus Anos de Perambulação“, no qual ficava
implícita a sua grande admiração pelo autor de “Os Buddenbrooks”, que transcrevo a seguir com o
mesmo enlevo com que o li da primeira vez:
“(…) Em relação aos diálogos dos meus
romances, creio que que já me libertei em grande parte da meticulosidade
japonesa. Os escritores do meu país gostam de demonstrar o delicado talento que
possuem para revelar, de maneira indireta, através de conversas, a
personalidade, o temperamento e concepção de vida de seus personagens; mas sem
relação com a psicologia e o temperamento dos personagens, conversas que
se lê apenas pelo seu conteúdo e, finalmente, longos diálogos que se confundem
com o mesmo ritmo dos trechos descritivos, constituem a qualidade especial dos
romances de Goethe, e da literatura alemã em geral (…)”
E, concluindo, entrego a palavra final ao
seu biógrafo e comentador: “Mann, disse ele, herdou de Goethe ‘a
influência épica do diálogo’; e o estilo de “O
Templo do Pavilhão Dourado” ficou caracterizado por ele como ‘Ogai
[um dos seus mestres japoneses,
grande influência em sua adolescência] combinado com Mann’…”
/////