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terça-feira, 18 de dezembro de 2012

Mishima e eu (Franklin Jorge)




Descobri Yukio Mishima (1925-1970) num volume bastante manuseado, pertencente ao ator e diretor teatral Jesiel Figueiredo, ao tempo em que ele morava numa garagem nos fundos da casa de seus pais à Avenida Princesa Isabel com a rua Prof. Zuza, em Natal.

O livro era “Confissões de Uma Máscara“, considerado então uma obra de referência para homossexuais do mundo inteiro. Foi em 1968 ou 69, não lembro ao certo, pois em matéria de datas sou tal qual o presidente Lula e o Partido dos Trabalhadores em matéria de ética: ignoro ou não sei…

Vacinado contra o sensacionalismo, eu o folheei, mas não li, apesar de conhecer o leitor sofisticado que era Jesiel, sempre em dia com o que havia de novo, cuja biblioteca especializada em peças teatrais e teorias cênicas e dramatúrgicas, constituia-se em precioso repositório de tudo o que se fizera de excelente, do teatro clássico greco-latino às vanguardas contemporâneas (Ionesco, Beckett, Arrabal etc). Pensei que se tratasse de uma obra de proselitismo gay escrita por um japonês ainda desconhecido no Brasil. E não fui adiante…

Na verdade, somente leria Mishima alguns anos depois, no final dos anos setenta, após o seu rumoroso suicídio que, na época, não teve quase nenhuma repercussão entre nós, apesar de tratar-se de um Prêmio Nobel de Literatura. Curiosamente, não foi através dos livros, mas do cinema, que descobri e mergulhei de cabeça no mundo mental e criativo de Mishima, ao assistir no Cine Rio Grande a uma sessão vespertina de “O Marinheiro que caiu em Desgraça com o Mar“, uma de suas obras-primas de paixão e violência incontida, projetada para uma plateia de quinze ou vinte pessoas que foram saindo à medida que o tempo passava.

A partir daí, obcecado pela complexidade da sua obra, tornei-me uma espécie de mishimaníaco, lendo tudo o que ele escrevera e o que fora escrito até então a seu respeito, como o extraordinário ensaio de Marguerite Yourcenar. Importei da Espanha e Portugal os seus livros que somente seriam publicados no Brasil, em escala comercial, nos anos oitenta, pela Editora Brasiliense, que pôs ao alcance dos nossos leitores algumas de suas obras mestras, como “O  Templo do Pavilhão Dourado” e a famosa tetralogia “O Mar da Fertilidade“, evocatórias do mistério da condição humana e do prestígio do mal.

Nessa época eu já me tornara um grande apreciador da literatura japonesa clássica e moderna, porém dos contemporâneos o meu autor predileto era e continua sendo Osamu Dazai, que, a exemplo de outros notáveis escritores japoneses, como o nobelino Kawabata, também se suicidaria.

Escritor estranho, expoente de uma cultura milenária, permanentemente obcecado pela ideia da morte voluntária, desde a sua adolescência sentia Mishima ânsias de destruição e de autodestruição, não pelo desejo mero e simples de impressionar, como ocorre com alguns jovens, mas por uma condição intrínseca de sua natureza semelhante à de um onnagata, ou seja, de uma criação resultante da união ilícita entre o sonho e a realidade, segundo o seu perspicaz biógrafo inglês Henry Scott Stokes. 

A propósito, o onnagata é  um gênero de ator muito apreciado em seu país, cuja formação exige-lhe anos de aprendizagem, auto-sacrifício e abnegação; um tipo peculiar de ator que se especializa na interpretação de papéis femininos, o que não faz dele um travesti, no sentido que conhecemos, mas um homem capaz de transmitir com sutileza e grande refinamento as complexas emoções femininas.

Escritor de formação clássica, devotado ao culto do Imperador, logo descobri que tínhamos alguns pontos em comum, como a necessidade de elegermos um mestre — ou vários –, no sentido de dispormos de parâmetros e referenciais encarados como desafios a serem superados. Um desses mestres nos era comum — o alemão Thomas Mann, que ainda aos catorze anos, no Assu, elegi como um marco a ser de alguma forma ultrapassado…

Senti que estava diante de um autêntico escritor. Um escritor para quem, de fato, a literatura existia e se exprimia em linguagem de homem, concisa e autêntica, sem excrescências retóricas. Exultei quando li o que ele escrevera em “Meus Anos de Perambulação“, no qual ficava implícita a sua grande admiração pelo autor de “Os Buddenbrooks”, que transcrevo a seguir com o mesmo enlevo com que o li da primeira vez:

“(…) Em relação aos diálogos dos meus romances, creio que  que já me libertei em grande parte da meticulosidade japonesa. Os escritores do meu país gostam de demonstrar o delicado talento que possuem para revelar, de maneira indireta, através de conversas,  a personalidade, o temperamento e concepção de vida de seus personagens; mas sem relação com a psicologia  e o temperamento dos personagens, conversas que se lê apenas pelo seu conteúdo e, finalmente, longos diálogos que se confundem com o mesmo ritmo dos trechos descritivos, constituem a qualidade especial dos romances de Goethe, e da literatura alemã em geral (…)”

E, concluindo, entrego a palavra final ao seu biógrafo e comentador: “Mann, disse ele, herdou de Goethe ‘a influência épica do diálogo’; e o estilo de “O Templo do Pavilhão Dourado” ficou caracterizado por ele como ‘Ogai [um dos seus mestres japoneses, grande influência em sua adolescência] combinado com Mann’…”

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