Passei
a manhã de olho no Génitrix, de
François Mauriac. Como não sei francês (comprei o exemplar por simples vaidade:
toda vez que algum intelectual me prometesse visita, eu poria o impresso sobre
a mesinha da sala, junto a um Epistularum liber primus, de Quintus Horatius Flaccus; a um The tempest, de
Shakespeare; a um Der prozess, de Kafka,
e outras especiarias da arte literária). Ontem, porém, não foi a vaidade que me
fez voltar a Mauriac. Foi a curiosidade mesmo. Pois eu não esperava nenhum
intelectual, mas quatro alunas de meu colégio particular e muito restrito
(minha oficina literária, recentemente inaugurada, com exercício na pequena sala
de visitas). Semana passada havia dado a elas uma tarefa: examinar quatro
livros de novos poetas brasileiros e um de contos. Não apenas ler, mas
comentá-los, por escrito. Feito sorteio, Camila Peçanha foi mimoseada com Alma de brinquedo (Cataguases: Ed.
Funcec, 2010), de Leonardo de Paula Campos. Com Sofia Correia ficou Incompleto movimento (Rio de Janeiro: José
Olympio, 2011), de Alberto Bresciani. A Simone Farias entreguei Ossos de princesas (São Paulo: Dobra Editorial,
2012), de Beatriz Grimaldi. A Manoela Ximenes coube um presente duplo: Verdes versos (Vitória:
Flor&cultura, 2007) e Rascunhos do
absurdo (mesma editora, 2010), ambos de Jorge Elias Neto.
Mal se
acomodaram nos sofás, iniciei a aula: “Compuseram as resenhas?” No minuto
seguinte, dei a ordem: “Agora apresentem, uma de cada vez, as críticas. Quem
será a primeira?” Camila ergueu o braço e se pôs a dizer: “Pelos substantivos
usados, vê-se que se trata de poeta em fase de aprendizado. No primeiro poema
encontramos ‘sinal’, ‘céu’, ‘noite’, ‘desgraça’, ‘estrelas’, ‘dia’, substantivos
de uso cotidiano. Os verbos também estão nesse mesmo nível de linguagem:
‘intercalar’, ‘escoltar’, ‘perder’, ‘despontar’”. Fez outras agressões ao
estilo do jovem poeta mineiro, ciente de estar com a bola toda. Interrompi sua
leitura (“na segunda fase da aula você concluirá a leitura”) e passei a Simone
o direito de recitar sua opinião. Esperei a primeira frase, com certa apreensão.
Afinal, essas leitoras são por demais maldizentes.
Cruzei
os dedos e observei as outras garotas. Logo, porém, relaxei: “Na primeira peça,
o leitor já percebe o quanto terá de comoção pela frente. Uma senhora (não se
sabe a idade), a solidão num apartamento, as lembranças da infância, os
tormentos, a estupidez do pai, a concorrência com a irmã. Tudo com invulgar
intensidade: diálogos e ações. Aqueles, numa concisão impressionante. O
primeiro bloco seria conversa de agente policial com outra pessoa, após o
desfecho. Seguem-se diálogos (anteriores) dela (protagonista) com um
profissional do sexo. Tudo sem travessão e sem verbos de dizer. Os atos dela (e
as condições físicas e mentais) são narrados com precisão: Nada de digressões, descrições
ou informações secundárias. ‘A televisão do quarto há anos quebrada’. Tudo
intercalado, sem intervenção do narrador onisciente. ‘Desligou o telefone,
voltou para cama’. Apenas um ou outro cacoete do velho modo de redigir:
‘Resolveu arrumar o apartamento’. O desenlace ou o pré-desfecho, porém, pegam o
leitor desprevenido e o levam ao chão”.
Não
transcreverei o conto, por falta de espaço. Nem mesmo (e muito menos) o remate.
No entanto, tenho ganas de fazê-lo. Pois Beatriz Grimaldi não é flor que se
cheire. Desaconselhável para crianças e adolescentes não espancados em casa e
nas ruas (ainda ingênuas), pessoas demasiadamente sensíveis ou de coração
debilitado.
Havia
uma hora, ou mais, estávamos reunidos. Avistei Dora na sala de refeições, à
espera de ordem minha: “Pode servir”. A seguir, fomos lanchar. Disseram:
“preferimos merendar”. Apenas biscoito fino e suco de laranja. Avisei: 15
minutos de recreio, sem necessidade de se falar de literatura. Não adiantou
nada a minha proposição. Simone quebrou o gelo: “Génitrix é romance?” Não a censurei.
De
volta à sala de aula, convoquei Sofia a expor o seu comentário. “Não reparem;
esta é minha primeira resenha”. Todos rimos. E ela, ainda tímida, se pôs a declamar:
“Longe de ser palavroso (defeito de alguns poetas), Bresciani faz uma poesia desprovida
de atavios, sem afundar na vulgaridade, com frases ou construções verbais
libertas de adiposidades: ‘o extenso espanto externo’, ‘manada de sempres’
(“Revelação”); ‘adio a noite, avanço / ao avesso do dentro’ (“Sedimentos”). Não
é poesia retocada em mesa de bar ou ao acaso; não, é poesia bordada com esmero,
paciência, ou polida, como pedra preciosa”. Fiquei embasbacado. A garota leva
jeito para a crítica. Leu mais alguns parágrafos. Dei-lhe a nota nove e ela me
abraçou, para agradecer.
Percebi
impaciência (ou nervosismo) em Manoela. “Fique calma, ou nervosa. Não importa,
pois sua opinião está escrita. Ou seja, os dados estão lançados”. Camila quis
se exibir: “Alea jacta est”. Sofia se
sentiu à vontade para também demonstrar erudição: “Quem leu Les jeux sont faits?” Para não dar mais
corda àquelas faladeiras, ordenei: “Comece a leitura, Manoela”. E ela se pôs a
soletrar: “Na coleção de estreia, Verdes
versos, Jorge Elias Neto ainda se mostra inseguro ou incontido, como se a
folha de papel fosse campo aberto e nele pudesse correr como potro assustado.
Há excesso de palavras: ‘Nele se misturam as marcas / de tantas angústias
deixadas incógnitas / nesta manhã de mais um dia’ (“Manhã de mais um dia”). No
segundo volume, Rascunhos do absurdo,
percebe-se uma brusca mudança de rumo na dicção do poeta. Senão, vejamos o
pequeno poema “Solo” (menor que um haicai), de apenas dois versos: “Na
perspectiva da ponte / o pássaro solitário nunca volta’. Beleza de síntese”.
Fiz
nova interrupção: “Quero, para encerrar, uma frase lapidar de cada uma de
vocês, extraída dos textos que engendraram. Primeiro Camila Peçanha”. Que leu
isto: “Com Alma de brinquedo,
Leonardo de Paula Campos deu um passo no rumo da poesia. Poderá ainda gerar
poemas exemplares, se se dispuser a ler mais e a se exercitar na escrita”.
Apontei o dedo para Sofia Correia: “É a sua
vez”. De pronto, ela enfiou a vista no papel: “Os versos curtos de Alberto
Bresciani apontam para uma poesia de contenção. Como em “Ironia”: ‘Sob a crosta
/ uma semente // que entretanto / germina’. Mais enxuto do que isso só se for
um haicai legítimo”.
Simone
Farias me espiava, impaciente. “Agora sou eu?” Sorri-lhe: “Pode ser”. E ela molhou
os lábios: “Quer nos contos mais curtos, como ‘Calma’, ou nos mais alongados,
como ‘Comment je m’appelle?’, o que se vê em Beatriz Grimaldi é a elaboração
cuidadosa não só da frase (da fala dos personagens e da narração propriamente
dita), mas também da estrutura da composição”.
Por
derradeiro, Manoela Ximenes se manifestou: “Com a primeira publicação, Jorge
Elias Neto deu um passo firme como poeta, em busca do verso mais acabado, mais
longilíneo, mais retesado. E chegou ao poema sem gorduras, como em ‘Corpo
tombado’: ‘O piso era frio, / mas eu não estava lá. // Não pude / sentir o dano
das lágrimas’”.
Bati
palmas para as quatro. “Isto é um bom começo. Se não tiverem preguiça, poderão rabiscar
resenhas atrativas, artigos densos e chegar ao ensaio. Só precisam ler muito,
exercitar mais a escrita e abrir bem os olhos para certas armadilhas, como as
dos livros bonitos, provindos de grandes editoras, incensados pelos jornais ou
cheios de balangandãs verbais”. Elas me abraçaram e eu me abrasei. Confuso, só
pude fazer uma pergunta fora do contexto: “Quem quer levar François Mauriac?”
Fortaleza,
4 de dezembro de 2012.
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