Tenho
lido, com muito interesse, obras em prosa, diversas da ficção. Refiro-me a
ensaios (e isso vem desde a juventude, com os estudos filosóficos), relatos de
viagem (afundei-me, durante um tempo, naqueles viajantes europeus que para a América
vieram), manuais de história, mitologia, sociologia, cartas (quem não leu Pero
Vaz de Caminha?), conjuntos de artigos e resenhas, biografias (recentemente li
uma de Borges), memórias, entrevistas, etc. No final de 2012, recebi dois
volumes cujo assunto os inclui nesse espectro tão amplo: Lembranças miúdas, de Dias da Silva, e Meu brechó de textos, de Carlos Trigueiro.
O
cearense (de Lavras da Mangabeira) “enveredou pela biografia e o ensaio, pela
crônica de sabor regional e pelo memorialismo”, como observou Dimas Macedo, num
artigo. E nele citou algumas de suas coleções: Um Padre e Muitas Proezas
(1982), Cenas, Lições e Coisas (1984), Mangabeira nas Artes nas
Letras no Mundo (2002) e Pedaços da Vida e Outras Coisas em Pedaços
(2002). O ficcionista manauara não é tão prolixo (no espaço quase infinito da
prosa não-ficcional) quanto Dias, talvez porque tenha se dedicado mais ao conto
e ao romance. Estreou com Memórias da liberdade (1985), seguido de
O “jeito” brasileiro: um fenômeno
cultural (2009) e Ilações sobre a
criatividade latina e ladina do “jeito” (idem).
Tenho
visto Dias da Silva em livrarias e outros lugares, em Fortaleza, onde se
realizam encontros de escritores ou destes com leitores. Não nos vemos muito,
porém. Mando-lhe meus livros (de ano em ano) e ele me envia os seus. É assim a
vida de escritor brasileiro. Carlos Trigueiro só vi uma vez, no Rio de Janeiro.
Fez-me saber do nosso mútuo conhecimento, em 1976, na capital cearense. Não me
lembro disso, infelizmente. Agora trocamos mensagens eletrônicas, de vez em
quando. Outrossim, me brinda com suas publicações e eu retribuo o mimo com meus
raquíticos opúsculos. O primeiro tomo de Dias a me chegar aos olhos terá sido Da pena ao vento – I (anotações de pé de
página), ainda em 1981. Vieram outros ventos e muitas penas. Se não minto,
já são nove. Trigueiro me mimoseou (não em 1994, ano da edição, mas
recentemente) com os contos maravilhosos de O
clube dos feios e outras histórias extraordinárias.
Ora,
estou a me estender demasiadamente em informações inúteis para o leitor. É hora
de me voltar exclusivamente para os dois títulos mencionados no início desta
crônica. Então vamos a eles, com vagar e didaticamente. (Como não consigo me
livrar desses advérbios terminados em mente!).
As
reminiscências de Dias da Silva se iniciam no capítulo “Meu pai”. E vem logo a
primeira revelação: “Ainda vejo meu pai assim: ele não esbanja carinhos pelos
filhos nem pela minha mãe: o amor de meu pai chamar-se-ia amor envergonhado e
encabulado”. Encerra-o com um poema em versos livres: “Quero de volta meu pai:
jovem e lépido / o tempo – tirano implacável / o tempo – insensível carrasco /
enche de neve a cabeça de meu pai” (...).
No “hipotético
brechó” de Carlos Trigueiro não há lugar para as lembranças de família, da vida
doméstica, da infância. Há nele artigos, um ensaio, entrevistas, aforismos,
poemas, contos, crônicas, “imitações de haicais”, “rascunho de palestra”,
trechos de seus impressos (como as chamadas “lápides”). Engano-me: há, sim,
lugar para as lembranças de família. A parte intitulada “crônicas agudas”
trá-las. Uma delas, a primeira (“O ouvido de meu pai”) até cuida do mesmo tema celebrado
por Dias da Silva no princípio de seu compêndio. Carlos mostra seu pai assim:
“Meu pai tinha o que os americanos chamam de ‘perfect pitch’. Traduzindo em
miúdos: tinha ouvido absoluto – a capacidade rara de ouvir e reproduzir
imediatamente um determinado som”.
Dos
personagens principais de sua vida (pai, mãe, avó paterna, avô), Dias da Silva
passa aos lugares – Sítio Lajes (sua primeira morada) e casa da avó – e aos
acontecimentos: “Morte na cacimba”. A descrição é minuciosa e bem elaborada:
“Minha tia lava roupa com água da cacimba. Não é uma cacimba comum, igual a
tantas outras: buraco redondo, cavado fundo, até encontrar veias e água. A
cacimba das Lajes de minha avó é diferente. Assim: escavação com um a dois
metros de comprimento, e rasa. Feito tanque cavado até dar à água escondida no
chão”. Preciosidade de descrição.
A linguagem
de Carlos Trigueiro é, do mesmo modo, clara, objetiva e de fácil entendimento.
Não somente quando escreve artigos, mas também prosa de ficção. Pois este Meu brechó de textos é igualmente uma
compilação de trechos de seus contos e romances. Assim, “Ciúme artístico” (um
dos “aforismos do baú”), extraído de O
livro dos ciúmes: “Não confio em artistas... Tenho horror de pintores, são
traiçoeiros, olham para uma coisa e pintam outra. Ou olham para outra e pintam
uma coisa! Nem em músicos, só que a musa pode ser a mulher da gente”.
São dois
malabaristas das letras. Dias da Silva, apesar de lidar com reminiscências (da
infância), ou seja, de um passado bem distante, não menciona datas (anos) e
escreve como se fosse agora, sempre no presente do indicativo: (...) meu pai
“dorme o sono doce e sossegado dos bons e dos justos e dos que não estão em
falta”. Além disso, certamente já é falecido. Tudo é presente, sejam as
pessoas, sejam os acontecimentos. Os lugares, por isso, são descritos como se
não tivessem conhecido mudanças. Tudo é (na memória) como era: “A Barra do meu
Avô – terrenão bonito, o terreno do meu Avô – é cortada de caminhos e veredas”.
O
libertino Carlos Trigueiro (seu mais recente romance se intitula Libido aos pedaços) não se contenta com
rememorações infantis (inocentes). Vai direto à sexualidade, como na crônica
(são apenas três em todo o volume) “Sala de aula no fim do corredor”. Inicia-a
com a apresentação da professora de História, a jovem Helena, a quem chama de
uma das “semideusas das enciclopédias de papel acetinado”. E assim narra uma
cena, em sala de aula: a mestra, “mãos empoeiradas de giz”, “esboça no
quadro-negro os caminhos da helenização do Oriente”. O aluno (narrador) a
deseja: “Claro que a persigo – nos meus sonhos e devaneios – por entre as figueiras
perfumadas que enfloram ao amanhecer e circundam os burgos coríntios onde ela
pisa, vagueia e flutua. Primeiro vejo-a com a túnica descaída, seminua. Mais
adiante, sem a túnica, finalmente nua”.
Não
farei outras citações, que não sou copista de ninguém e muito menos desmancha-prazeres
de leitores. Apenas direi: Dias da Silva e Carlos Trigueiro me proporcionaram
neste início de 2013 alguns momentos de prazer. Quem não se regozija com um bom
texto? Só se for insensível. Ou não tiver olhos para ler ou ouvidos para ouvir.
Fortaleza,
4 de janeiro de 2013.
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