Foi
Belinda quem falou sobre o anúncio no jornal. “Isa, acho que vi algo que pode
servir”. Eu havia sido dispensada de um emprego e atravessava uma espécie de
limbo. O dinheiro da indenização me garantiria uma pequena tranquilidade, mas
eu sabia que era algo temporário. Dois,
três meses no máximo. Depois ele acabaria, e eu teria de sair em campo outra
vez. “Do que se trata?”, perguntei.
“Espere aí”. Ouvi o som rascante de papel sendo folheado freneticamente,
depois ela leu o anúncio dando à voz uma entonação teatral, como se comunicasse
uma premiação. Não falavam em telefone,
mas havia um endereço, que anotei num resto de guardanapo.
“Você
tem certeza de que não há um telefone aí?”, perguntei. “Não, não há”, Belinda
respondeu. Quem estava brincando assim com o tempo dos outros? Um telefonema
poderia resumir tudo. Mas aquele tipo de
emprego era um tanto incomum. Dizia que era para pessoas com habilidades de
leitor. Dispensavam-se atributos profissionais. Então, eu não estaria
concorrendo com atores ou speakers de
rádio. Era preciso ainda considerar um detalhe importante. Como requisito, o
candidato deveria ter amabilidade e uma voz com textura agradável. Prometiam um bom salário, se levássemos em
conta um expediente tão curto.
“O
que você acha disso?”, perguntei a Belinda. “Como vou saber, cunhada?”, disse.
“Sei que você devora livros, não é?” Sem dúvida, mas o fato de comprá-los com
regularidade não me qualificava a muita coisa, muito menos a um ofício. Eu me
achava apenas um desvio estatístico, uma leitora perdida em meio a uma multidão
avessa à leitura.
“Você
quer saber o que é? Vá lá e tente”, ela disse, dando o assunto por encerrado.
No
dia seguinte, acordei mais cedo, pois teria praticamente de cruzar a cidade
para a entrevista. Olhei mais uma vez o endereço, que ficava num bairro de
classe alta. Antes de parecer intimidante, o dado me ofereceu mais segurança.
Pelo menos poderiam pagar, pensei. Vesti o traje básico de guerra, pus um batom
rosa suave, um tom discreto para minha pele morena. Telefonei para Beto e
avisei que ficaria fora toda a manhã. “Você não quer que a acompanhe?”, sugeriu
Beto. “Não acha que vou me sentir protegida demais?”, perguntei. “Você que
sabe”, ele respondeu. Depois liguei para Belinda. Ela poderia tentar justificar
minha ausência aos professores na faculdade.
O
táxi me deixou diante de um prédio de fachada majestosa. Na portaria, expliquei
que estava ali pelo anúncio, mas não fui autorizada a subir. Tive de esperar
até que alguém viesse me buscar. Uma senhora de cerca de 50 anos surgiu minutos
depois. Falei meu nome e subimos, trocando sorrisos mútuos. O elevador parou no
décimo andar. Rosa me levou até um pequeno escritório. Fiquei esperando na
ante-sala. “O senhor Fernando vai
conversar já com você”, ela avisou e desapareceu por uma porta lateral.
Fernando
apareceu por uma porta no sentido contrário àquela por onde Rosa havia saído. Ele
aparentava ter uns 40 anos, eu tinha vinte, ele poderia ser meu pai. Era alto e trajava um terno elegante; o
cabelo era cortado baixo; a barba, bem escanhoada; e ele falava num tom
educado. Exalava sucesso. Tentei adivinhar sua profissão, e uma simpatia recíproca
se estabeleceu entre nós. “Você é a primeira candidata do dia”, ele avisou
estendendo a mão.
“Fernando,
muito prazer.”
“Isa,
Isa Vargas.”
Ele
continuou: “Você é a vigésima nos últimos três dias, não imaginei que o anúncio
faria tanto sucesso”. Parecia satisfeito. Procurei o que dizer, então falei um
“que bom” sem muita convicção.
Minha
curiosidade sobre o emprego escorria pelos poros. Adentramos uma pequena sala,
ele me indicou uma cadeira e sentou-se no lado oposto. Havia uma pequena
estante com alguns dicionários e uns poucos livros. Num impulso natural, passei
os olhos neles, e foi impossível não perceber alguns escritores americanos ali,
sendo que alguns eram minhas companhias regulares. “Você está em boa companhia,
Isa”, busquei um auto-incentivo. Sobre a mesa, à direita de Fernando, havia um
laptop em uso. Fernando digitou por alguns instantes, então rompeu o silêncio.
“Vou explicar a nossa proposta”, disse calmamente, “depois, se você demonstrar
interesse, faremos um pequeno teste”. Concordei, disse um “tudo bem” enquanto
ele me olhava nos olhos.
Enquanto
ele dava pormenores do que seriam minhas atividades, me surpreendi com o que
seria mais uma peça de ficção do que a realidade com a qual eu estava lidando
ali, naquele momento. Eu, ou outra escolhida, seria contratada para permanecer
em companhia de Eleonora, uma viúva de 65 anos, durante três horas do dia, num
turno a ser estabelecido entre mim e meu patrão, Fernando.
Eleonora
era mãe de Fernando. Perdera o marido havia cinco anos, mas nada se aproximava
do que aconteceria mais tarde, quando ela sofreria outro baque familiar. Seu
filho Alexander morreria aos dezessete anos em um acidente de carro, ao
regressar de uma festa na companhia de uma namorada e de um amigo, que
sobreviveram. A tragédia deixou uma
sequela profunda em Eleonora. Ela parou de enxergar, e todos os especialistas
concordaram num diagnóstico: a cegueira era uma cortina que Eleonora,
conscientemente, erguera entre ela e o mundo à sua volta. Não adiantaram
viagens, terapias de grupo e outros recursos. A visão não voltou. Fernando
sentia-se emparedado, e como único filho tentava levantar o ânimo da mãe. O
lenitivo foi descoberto quase por acaso. Eleonora se deu conta de que lhe fazia
bem ouvir que outras pessoas lessem para ela. Fernando tomou para si esta
missão, mas as leituras só podiam ser feitas à noite, com o tempo que lhe
sobrava depois de um dia como atarefado procurador do Ministério Público.
“Pausa
para uma água, um chá, suco, café?”, propôs Fernando.
“Um
pouco de água”, aceitei.
Fernando
pensou em um substituto para suas ausências, então mandou buscar uma coleção de
áudio books, mas a própria Eleonora deixou claro que leituras dissociadas de
calor humano não funcionariam. Contando com o auxílio de amigos e da própria
namorada, organizou um rodízio para que todos pudessem ler um pouco para a mãe,
ao longo de algumas horas do dia. A estratégia deu certo por algum tempo, mas
os pedidos de desculpas dos envolvidos justificando suas impossibilidades cada
vez mais frequentes levaram Fernando a pensar em uma alternativa.
Faz
agora dois meses que estou com Eleonora. Outro dia ela me confidenciou que
simpatizou comigo à primeira vista; que pediria a Fernando que me contratasse
independente do resultado do meu teste de leitura, no qual, diga-se de
passagem, me saí muito bem. Surpreendeu-me o conhecimento de Eleonora sobre
livros e escritores, porém, mostrando quão delicada ela era, permitiu que eu
sugerisse autores. Aproveitei para introduzir alguns mais jovens, boa parte
deles meus amigos que vinham tentando vencer como escritores, embora acredite
que este era meu truque para tentar afastar Eleonora de sua torre de marfim.
Minha rotina adquiriu uma regularidade quase monástica. Faculdade pela manhã,
três horas com Eleonora à tarde, e noite livre para a esbórnia ao lado de Beto,
um bon vivant que ainda se dava o luxo de morar com os pais, bater perna no
curso de Engenharia pela manhã e pegar surfe à tarde.
“O
namoro de vocês é uma prova de que o amor paira acima das barreiras de classe”,
filosofava Belinda, minha alegre cunhadinha. “Não precisa me tratar como uma
sem culote”, eu replicava. “Afinal, o armazém de seu Abelardo lá no interior
ainda é capaz de pagar minha faculdade e meu apartamento, tá?”
Eu
achava Eleonora uma mulher linda, mesmo aos 65 anos, sinal de que fora ainda
mais bela na juventude. Em pouco tempo havíamos desenvolvido uma intimidade,
mas não o bastante para que falássemos do passado, do seu passado. É como se
Eleonora vivesse num eterno presente. Vez por outra, reclamava da namorada de
Fernando, que lhe roubara o filho, e esse era o máximo a que chegava seu mau
humor. No mais, nos dávamos muito bem, e, quando eu não estava lendo páginas
intermináveis de algum romance, ficávamos preenchendo nosso tempo do mesmo modo
que uma neta e sua avó fariam.
Um
dia ela fez a proposta: “Traz o Beto para eu conhecer”. Não sei se deveria,
afinal, meu contrato de trabalho era com Fernando, e, sendo ele meu patrão,
poderia não concordar com o que parecia o descumprimento de uma cláusula.
Eleonora insistiu, então um dia eu levei Beto comigo. Rosa nos serviu bolo, salgadinhos e
refrigerantes, como se nosso encontro fosse um animado convescote entre a avó e
seus netinhos. Beto não tinha avó, e gostou de Eleonora. Novos convites se
sucederam, mas, preocupada com o patrão, eu cedia aos pedidos de Eleonora a
contragosto.
Algum
tempo depois, Beto me deu de presente um par de brincos. “Na verdade, é um
presente da vó Eleonora”, ele disse. “Como assim?”, perguntei enquanto
rolávamos sobre a cama no meu apê. “Um presente, ora”, disse com a voz
carregada de ironia. “Explique-se melhor”, cobrei muito curiosa. “Por que ela
não me falou nada?” Beto se ergueu num salto. “Não poderia falar”, ele foi
dizendo enquanto deixava o quarto, “ela não sabe”. Senti meu corpo estremecer,
uma risada estridente e idiota saía de mim e se projetava pelo quarto. Tentei
alcançar Beto. “Porra, cara, o que você está dizendo?”. Ele se jogou no pequeno
sofá na sala. “Isa, você é boazinha demais, ouça, aquela avó tem uma fortuna
guardada naquele apartamento”. Senti-me
como se estivesse sendo esganada e o ar me faltasse aos poucos. Você está certo
de que a vida está nos eixos, e subitamente você percebe que o destino estava
rindo todo o tempo bem na sua cara. Cedo ou tarde, os monstros vêm à tona. Beto
era um deles? Como é que nunca dera um sinal, uma pista? Eu havia entregado a
virgindade a um sádico e nem me apercebera disso? Beto era mesmo um monstro,
mas a que ponto chegava sua monstruosidade?
Passei
uma semana evitando Beto e dando desculpas a Belinda para não me encontrar com
ela. Mal conseguia encarar Eleonora. Ela me perguntou se eu estava doente. Eu
não sabia o que fazer com o par de brincos. Eles iam e vinham comigo, mas eu
não chegara a uma decisão se deveria contar a verdade a Eleonora e me demitir.
Ou se simplesmente esquecia os brincos em algum lugar do apartamento dela, quem
sabe nem dessem pela falta, talvez atribuíssem o fato a um lapso de Eleonora.
Afinal, ela era legal, mas não estava com a bola muito ok, com aquela cegueira
psicológica. À noite, sozinha em meu apartamento, eu permanecia olhando os
brincos. Caramba, eram lindos, e nesse ponto tinha de admitir: Beto tinha um
faro certeiro. Pus os brincos e fui até o quarto conferir no espelho. De certa
forma, pareciam ter sido feitos para mim.
Depois
de duas semanas, eu ainda evitava Beto, mas não pude deixar de atender Belinda.
Ela apareceu de surpresa e se queixou do sumiço. “Se é um rolo com Beto,
reconsidere, pois ele está sentindo sua falta”, ela disse. “E na próxima semana
vai ser aniversário da mamãe, ela não vai perdoar você, caso você falte”.
Talvez
as bebidas da noite de aniversário, talvez a música, talvez o amor que a
família de Beto me dedicava, o fato é que reatamos o namoro, mas sob uma
promessa: que o lance dos brincos fosse enterrado para sempre. Decidimos
creditar o episódio a um mau momento da nossa relação, que ficaria para trás,
como as águas de um rio.
Um
dia recebi um telefonema de Fernando, no qual ele me falou que queria fazer uma
surpresa à mãe. Ele queria oficializar o seu noivado; daria uma festinha íntima
e gostaria que eu fosse. Ah, eu poderia levar o namorado, se tivesse. Explicou
que Eleonora se sentia muitíssimo bem com minha companhia e minhas leituras, eu
já poderia me considerar um pouco da família. Imaginei como tudo não seria
chique, apesar de privê. Pedi ajuda a Belinda e acabamos comprando um lindo
vestido. Disse a Beto que ele estava convidado, mas que ficasse longe de
brincos e anéis. Ele pareceu irritado com a piada.
A
namorada de Fernando, ou sua quase noiva, era bonita e elegante, e pareceu que
dedicava a Fernando um amor genuíno. Não devia haver interesse na relação, como
Eleonora gostava de afirmar. Concluí que a implicância não passava de uma
manifestação de ciúme maternal. Também estavam na noite do noivado alguns
amigos comuns de Fernando e sua namorada. Uma festa tranquila, acalentada pela
brisa cálida da noite. As janelas do amplo apartamento estavam todas abertas, e
o vento agitava levemente as cortinas. Uma música suave saía de um aparelho no
fundo da sala, inundando o ambiente na medida certa, de modo que as pessoas
podiam conversar entre si em seus tons normais de voz. Depois do jantar, fui
falar com Eleonora, que permaneceu todo o tempo lá no topo do seu pedestal,
como um adorno desapercebido. Dei-lhe um beijo de boa noite e parti de braços
dados com Beto.
]
No
caminho para casa, comentamos a festa. “Noivado num tempo desses, ah, dá um
tempo”, Beto ironizou. Concordei e rimos juntos. “Vamos para o apê?”, ele
propôs. “Pode ser”, topei, “mas nada de passar a noite, nada de mulherzinha e
maridinho, hein?” Beto devia estar um pouco bêbado, eu só podia atribuir o que
ele falou em seguida a umas doses a mais de uísque, pois o que ele contou era
aterrador, era horripilante. A monstruosidade do que ele revelou estava muitos
graus acima da monstruosidade do roubo dos brincos. Beto aproveitou a festa de
noivado para se certificar de algo que ele apenas desconfiava: Eleonora
guardava dinheiro vivo no apartamento. Dólares. Como os brincos, aquilo ia ser
fácil. Era só pegar uma parte. Nem dariam pela falta. Ele detalhava sua
descoberta com um brilho no olhar. À medida que expunha seu plano, eu me sentia
tomada por uma vertigem. O monstro estava de volta, e bem à minha frente.
“Isa,
acorda”, Beto me sacudiu pelos braços, eu estava catatônica. “Eu peguei a
grana, contei, até cheirei... é de verdade, e pode ser nossa”.
“Você
enlouqueceu?”, gritei. “Você perdeu a noção?”.
“Aquilo
pode ser nosso, e é tão fácil.”
“Não
quero ser cúmplice de uma monstruosidade.”
“Não
há nada de monstruoso, eles têm bastante, nem vão notar.”
“O
dinheiro é deles, não é assim como você está pensando.”
“Pense
no que você pode fazer com essa grana.”
“Deus,
não acredito.”
“Deus
não existe, e se não existe, tudo é permitido.”
“Porra,
cara, você leu besteira demais.”
“Você
não desgruda de seus livros e eu é que sou o leitor? Eu quero aquele dinheiro.”
“Só
se você passar por cima do meu cadáver.”
“Ou
sobre o cadáver de Eleonora.”
“O
que disse? Você não chegou a pensar em...?”
“Pensei,
estou pensando.”
“Sua
família precisa ser avisada.”
“Você
não tem ideia das falcatruas em que aquela família anda metida. De onde você
acha que vêm aqueles três carros na garagem? E as intensas viagens do meu pai?”
“Amanhã
vou pedir demissão, isso já foi longe demais.”
“Não
chegou nem perto.”
“Talvez
seja o caso de chamar a polícia.”
“Admiro
sua indignação, mas não há qualquer tipo de prova.”
“Você
é um monstro.”
“Monstruosa
é a vida.”
No
dia seguinte liguei para Fernando e disse que ia me demitir. Ele protestou,
argumentando que Eleonora estava muito bem com a terapia das leituras, e se
afeiçoara a mim de um modo especial. “Eu sei”, respondi, mas expliquei que
minha mãe estava doente, e eu teria de passar uns tempos ajudando a cuidar
dela. Fernando fez um depósito em minha conta, sequer me despedi de
Eleonora. Voltei a procurar um novo
emprego e passei a evitar os locais que Beto frequentava. Rechaçava os assédios
da mãe dele, e, sobretudo, de Belinda, mas acabei revelando a ela que meu
namoro com Beto havia terminado, era uma decisão irreversível.
Uma
semana depois, recebi uma ligação de Fernando. Ele parecia feliz, pois havia
conseguido um substituto para mim. “E foi difícil?”, quis saber, cheia de
curiosidade. “Difícil foi convencer minha mãe de que você não voltaria, pois
estava enfrentando problemas familiares”, disse. “Pura verdade”, lamentei. “Mas
encontraram a pessoa certa para as leituras de Eleonora, certo?” Ele respirou
fundo do outro lado, depois completou: “Certíssimo, Eleonora sugeriu e eu
acatei na hora. Contratamos Beto, seu namorado. Sei que minha mãe continuará em
muito boas mãos”. Falei “boa sorte”, desliguei e desci correndo as escadas.
Estava atrasada para a primeira aula da manhã.
/////