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quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

A mulher cega (Paulo Lima)




            

Foi Belinda quem falou sobre o anúncio no jornal. “Isa, acho que vi algo que pode servir”. Eu havia sido dispensada de um emprego e atravessava uma espécie de limbo. O dinheiro da indenização me garantiria uma pequena tranquilidade, mas eu sabia que era algo temporário.  Dois, três meses no máximo. Depois ele acabaria, e eu teria de sair em campo outra vez. “Do que se trata?”, perguntei.  “Espere aí”. Ouvi o som rascante de papel sendo folheado freneticamente, depois ela leu o anúncio dando à voz uma entonação teatral, como se comunicasse uma premiação.  Não falavam em telefone, mas havia um endereço, que anotei num resto de guardanapo.
            
“Você tem certeza de que não há um telefone aí?”, perguntei. “Não, não há”, Belinda respondeu. Quem estava brincando assim com o tempo dos outros? Um telefonema poderia resumir tudo.  Mas aquele tipo de emprego era um tanto incomum. Dizia que era para pessoas com habilidades de leitor. Dispensavam-se atributos profissionais. Então, eu não estaria concorrendo com atores ou speakers de rádio. Era preciso ainda considerar um detalhe importante. Como requisito, o candidato deveria ter amabilidade e uma voz com textura agradável.  Prometiam um bom salário, se levássemos em conta um expediente tão curto.
            
“O que você acha disso?”, perguntei a Belinda. “Como vou saber, cunhada?”, disse. “Sei que você devora livros, não é?” Sem dúvida, mas o fato de comprá-los com regularidade não me qualificava a muita coisa, muito menos a um ofício. Eu me achava apenas um desvio estatístico, uma leitora perdida em meio a uma multidão avessa à leitura.
“Você quer saber o que é? Vá lá e tente”, ela disse, dando o assunto por encerrado.
             
No dia seguinte, acordei mais cedo, pois teria praticamente de cruzar a cidade para a entrevista. Olhei mais uma vez o endereço, que ficava num bairro de classe alta. Antes de parecer intimidante, o dado me ofereceu mais segurança. Pelo menos poderiam pagar, pensei. Vesti o traje básico de guerra, pus um batom rosa suave, um tom discreto para minha pele morena. Telefonei para Beto e avisei que ficaria fora toda a manhã. “Você não quer que a acompanhe?”, sugeriu Beto. “Não acha que vou me sentir protegida demais?”, perguntei. “Você que sabe”, ele respondeu. Depois liguei para Belinda. Ela poderia tentar justificar minha ausência aos professores na faculdade.
             
O táxi me deixou diante de um prédio de fachada majestosa. Na portaria, expliquei que estava ali pelo anúncio, mas não fui autorizada a subir. Tive de esperar até que alguém viesse me buscar. Uma senhora de cerca de 50 anos surgiu minutos depois. Falei meu nome e subimos, trocando sorrisos mútuos. O elevador parou no décimo andar. Rosa me levou até um pequeno escritório. Fiquei esperando na ante-sala.  “O senhor Fernando vai conversar já com você”, ela avisou e desapareceu por uma porta lateral.   
             
Fernando apareceu por uma porta no sentido contrário àquela por onde Rosa havia saído. Ele aparentava ter uns 40 anos, eu tinha vinte, ele poderia ser meu pai.  Era alto e trajava um terno elegante; o cabelo era cortado baixo; a barba, bem escanhoada; e ele falava num tom educado. Exalava sucesso. Tentei adivinhar sua profissão, e uma simpatia recíproca se estabeleceu entre nós. “Você é a primeira candidata do dia”, ele avisou estendendo a mão.
            “Fernando, muito prazer.”
            “Isa, Isa Vargas.”
           
Ele continuou: “Você é a vigésima nos últimos três dias, não imaginei que o anúncio faria tanto sucesso”. Parecia satisfeito. Procurei o que dizer, então falei um “que bom” sem muita convicção.
             
Minha curiosidade sobre o emprego escorria pelos poros. Adentramos uma pequena sala, ele me indicou uma cadeira e sentou-se no lado oposto. Havia uma pequena estante com alguns dicionários e uns poucos livros. Num impulso natural, passei os olhos neles, e foi impossível não perceber alguns escritores americanos ali, sendo que alguns eram minhas companhias regulares. “Você está em boa companhia, Isa”, busquei um auto-incentivo. Sobre a mesa, à direita de Fernando, havia um laptop em uso. Fernando digitou por alguns instantes, então rompeu o silêncio. “Vou explicar a nossa proposta”, disse calmamente, “depois, se você demonstrar interesse, faremos um pequeno teste”. Concordei, disse um “tudo bem” enquanto ele me olhava nos olhos.
             
Enquanto ele dava pormenores do que seriam minhas atividades, me surpreendi com o que seria mais uma peça de ficção do que a realidade com a qual eu estava lidando ali, naquele momento. Eu, ou outra escolhida, seria contratada para permanecer em companhia de Eleonora, uma viúva de 65 anos, durante três horas do dia, num turno a ser estabelecido entre mim e meu patrão, Fernando.
             
Eleonora era mãe de Fernando. Perdera o marido havia cinco anos, mas nada se aproximava do que aconteceria mais tarde, quando ela sofreria outro baque familiar. Seu filho Alexander morreria aos dezessete anos em um acidente de carro, ao regressar de uma festa na companhia de uma namorada e de um amigo, que sobreviveram.   A tragédia deixou uma sequela profunda em Eleonora. Ela parou de enxergar, e todos os especialistas concordaram num diagnóstico: a cegueira era uma cortina que Eleonora, conscientemente, erguera entre ela e o mundo à sua volta. Não adiantaram viagens, terapias de grupo e outros recursos. A visão não voltou. Fernando sentia-se emparedado, e como único filho tentava levantar o ânimo da mãe. O lenitivo foi descoberto quase por acaso. Eleonora se deu conta de que lhe fazia bem ouvir que outras pessoas lessem para ela. Fernando tomou para si esta missão, mas as leituras só podiam ser feitas à noite, com o tempo que lhe sobrava depois de um dia como atarefado procurador do Ministério Público.
            “Pausa para uma água, um chá, suco, café?”, propôs Fernando.
            “Um pouco de água”, aceitei.
             
Fernando pensou em um substituto para suas ausências, então mandou buscar uma coleção de áudio books, mas a própria Eleonora deixou claro que leituras dissociadas de calor humano não funcionariam. Contando com o auxílio de amigos e da própria namorada, organizou um rodízio para que todos pudessem ler um pouco para a mãe, ao longo de algumas horas do dia. A estratégia deu certo por algum tempo, mas os pedidos de desculpas dos envolvidos justificando suas impossibilidades cada vez mais frequentes levaram Fernando a pensar em uma alternativa.
             
Faz agora dois meses que estou com Eleonora. Outro dia ela me confidenciou que simpatizou comigo à primeira vista; que pediria a Fernando que me contratasse independente do resultado do meu teste de leitura, no qual, diga-se de passagem, me saí muito bem. Surpreendeu-me o conhecimento de Eleonora sobre livros e escritores, porém, mostrando quão delicada ela era, permitiu que eu sugerisse autores. Aproveitei para introduzir alguns mais jovens, boa parte deles meus amigos que vinham tentando vencer como escritores, embora acredite que este era meu truque para tentar afastar Eleonora de sua torre de marfim. Minha rotina adquiriu uma regularidade quase monástica. Faculdade pela manhã, três horas com Eleonora à tarde, e noite livre para a esbórnia ao lado de Beto, um bon vivant que ainda se dava o luxo de morar com os pais, bater perna no curso de Engenharia pela manhã e pegar surfe à tarde.
           
“O namoro de vocês é uma prova de que o amor paira acima das barreiras de classe”, filosofava Belinda, minha alegre cunhadinha. “Não precisa me tratar como uma sem culote”, eu replicava. “Afinal, o armazém de seu Abelardo lá no interior ainda é capaz de pagar minha faculdade e meu apartamento, tá?”
            
Eu achava Eleonora uma mulher linda, mesmo aos 65 anos, sinal de que fora ainda mais bela na juventude. Em pouco tempo havíamos desenvolvido uma intimidade, mas não o bastante para que falássemos do passado, do seu passado. É como se Eleonora vivesse num eterno presente. Vez por outra, reclamava da namorada de Fernando, que lhe roubara o filho, e esse era o máximo a que chegava seu mau humor. No mais, nos dávamos muito bem, e, quando eu não estava lendo páginas intermináveis de algum romance, ficávamos preenchendo nosso tempo do mesmo modo que uma neta e sua avó fariam.
           
Um dia ela fez a proposta: “Traz o Beto para eu conhecer”. Não sei se deveria, afinal, meu contrato de trabalho era com Fernando, e, sendo ele meu patrão, poderia não concordar com o que parecia o descumprimento de uma cláusula. Eleonora insistiu, então um dia eu levei Beto comigo.  Rosa nos serviu bolo, salgadinhos e refrigerantes, como se nosso encontro fosse um animado convescote entre a avó e seus netinhos. Beto não tinha avó, e gostou de Eleonora. Novos convites se sucederam, mas, preocupada com o patrão, eu cedia aos pedidos de Eleonora a contragosto.
            
Algum tempo depois, Beto me deu de presente um par de brincos. “Na verdade, é um presente da vó Eleonora”, ele disse. “Como assim?”, perguntei enquanto rolávamos sobre a cama no meu apê. “Um presente, ora”, disse com a voz carregada de ironia. “Explique-se melhor”, cobrei muito curiosa. “Por que ela não me falou nada?” Beto se ergueu num salto. “Não poderia falar”, ele foi dizendo enquanto deixava o quarto, “ela não sabe”. Senti meu corpo estremecer, uma risada estridente e idiota saía de mim e se projetava pelo quarto. Tentei alcançar Beto. “Porra, cara, o que você está dizendo?”. Ele se jogou no pequeno sofá na sala. “Isa, você é boazinha demais, ouça, aquela avó tem uma fortuna guardada naquele apartamento”.  Senti-me como se estivesse sendo esganada e o ar me faltasse aos poucos. Você está certo de que a vida está nos eixos, e subitamente você percebe que o destino estava rindo todo o tempo bem na sua cara. Cedo ou tarde, os monstros vêm à tona. Beto era um deles? Como é que nunca dera um sinal, uma pista? Eu havia entregado a virgindade a um sádico e nem me apercebera disso? Beto era mesmo um monstro, mas a que ponto chegava sua monstruosidade?
             
Passei uma semana evitando Beto e dando desculpas a Belinda para não me encontrar com ela. Mal conseguia encarar Eleonora. Ela me perguntou se eu estava doente. Eu não sabia o que fazer com o par de brincos. Eles iam e vinham comigo, mas eu não chegara a uma decisão se deveria contar a verdade a Eleonora e me demitir. Ou se simplesmente esquecia os brincos em algum lugar do apartamento dela, quem sabe nem dessem pela falta, talvez atribuíssem o fato a um lapso de Eleonora. Afinal, ela era legal, mas não estava com a bola muito ok, com aquela cegueira psicológica. À noite, sozinha em meu apartamento, eu permanecia olhando os brincos. Caramba, eram lindos, e nesse ponto tinha de admitir: Beto tinha um faro certeiro. Pus os brincos e fui até o quarto conferir no espelho. De certa forma, pareciam ter sido feitos para mim.
            
Depois de duas semanas, eu ainda evitava Beto, mas não pude deixar de atender Belinda. Ela apareceu de surpresa e se queixou do sumiço. “Se é um rolo com Beto, reconsidere, pois ele está sentindo sua falta”, ela disse. “E na próxima semana vai ser aniversário da mamãe, ela não vai perdoar você, caso você falte”.
             
Talvez as bebidas da noite de aniversário, talvez a música, talvez o amor que a família de Beto me dedicava, o fato é que reatamos o namoro, mas sob uma promessa: que o lance dos brincos fosse enterrado para sempre. Decidimos creditar o episódio a um mau momento da nossa relação, que ficaria para trás, como as águas de um rio.
             
Um dia recebi um telefonema de Fernando, no qual ele me falou que queria fazer uma surpresa à mãe. Ele queria oficializar o seu noivado; daria uma festinha íntima e gostaria que eu fosse. Ah, eu poderia levar o namorado, se tivesse. Explicou que Eleonora se sentia muitíssimo bem com minha companhia e minhas leituras, eu já poderia me considerar um pouco da família. Imaginei como tudo não seria chique, apesar de privê. Pedi ajuda a Belinda e acabamos comprando um lindo vestido. Disse a Beto que ele estava convidado, mas que ficasse longe de brincos e anéis. Ele pareceu irritado com a piada.
             
A namorada de Fernando, ou sua quase noiva, era bonita e elegante, e pareceu que dedicava a Fernando um amor genuíno. Não devia haver interesse na relação, como Eleonora gostava de afirmar. Concluí que a implicância não passava de uma manifestação de ciúme maternal. Também estavam na noite do noivado alguns amigos comuns de Fernando e sua namorada. Uma festa tranquila, acalentada pela brisa cálida da noite. As janelas do amplo apartamento estavam todas abertas, e o vento agitava levemente as cortinas. Uma música suave saía de um aparelho no fundo da sala, inundando o ambiente na medida certa, de modo que as pessoas podiam conversar entre si em seus tons normais de voz. Depois do jantar, fui falar com Eleonora, que permaneceu todo o tempo lá no topo do seu pedestal, como um adorno desapercebido. Dei-lhe um beijo de boa noite e parti de braços dados com Beto.
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No caminho para casa, comentamos a festa. “Noivado num tempo desses, ah, dá um tempo”, Beto ironizou. Concordei e rimos juntos. “Vamos para o apê?”, ele propôs. “Pode ser”, topei, “mas nada de passar a noite, nada de mulherzinha e maridinho, hein?” Beto devia estar um pouco bêbado, eu só podia atribuir o que ele falou em seguida a umas doses a mais de uísque, pois o que ele contou era aterrador, era horripilante. A monstruosidade do que ele revelou estava muitos graus acima da monstruosidade do roubo dos brincos. Beto aproveitou a festa de noivado para se certificar de algo que ele apenas desconfiava: Eleonora guardava dinheiro vivo no apartamento. Dólares. Como os brincos, aquilo ia ser fácil. Era só pegar uma parte. Nem dariam pela falta. Ele detalhava sua descoberta com um brilho no olhar. À medida que expunha seu plano, eu me sentia tomada por uma vertigem. O monstro estava de volta, e bem à minha frente. 

“Isa, acorda”, Beto me sacudiu pelos braços, eu estava catatônica. “Eu peguei a grana, contei, até cheirei... é de verdade, e pode ser nossa”.
            “Você enlouqueceu?”, gritei. “Você perdeu a noção?”.
            “Aquilo pode ser nosso, e é tão fácil.”
            “Não quero ser cúmplice de uma monstruosidade.”
            “Não há nada de monstruoso, eles têm bastante, nem vão notar.”
            “O dinheiro é deles, não é assim como você está pensando.”
            “Pense no que você pode fazer com essa grana.”
            “Deus, não acredito.”
            “Deus não existe, e se não existe, tudo é permitido.”
            “Porra, cara, você leu besteira demais.”
            “Você não desgruda de seus livros e eu é que sou o leitor? Eu quero aquele dinheiro.”
            “Só se você passar por cima do meu cadáver.”
            “Ou sobre o cadáver de Eleonora.”
            “O que disse? Você não chegou a pensar em...?”
            “Pensei, estou pensando.”
            “Sua família precisa ser avisada.”
          “Você não tem ideia das falcatruas em que aquela família anda metida. De onde você acha que vêm aqueles três carros na garagem? E as intensas viagens do meu pai?”
            “Amanhã vou pedir demissão, isso já foi longe demais.”
            “Não chegou nem perto.”
            “Talvez seja o caso de chamar a polícia.”
            “Admiro sua indignação, mas não há qualquer tipo de prova.”
            “Você é um monstro.”
            “Monstruosa é a vida.”
         
No dia seguinte liguei para Fernando e disse que ia me demitir. Ele protestou, argumentando que Eleonora estava muito bem com a terapia das leituras, e se afeiçoara a mim de um modo especial. “Eu sei”, respondi, mas expliquei que minha mãe estava doente, e eu teria de passar uns tempos ajudando a cuidar dela. Fernando fez um depósito em minha conta, sequer me despedi de Eleonora.  Voltei a procurar um novo emprego e passei a evitar os locais que Beto frequentava. Rechaçava os assédios da mãe dele, e, sobretudo, de Belinda, mas acabei revelando a ela que meu namoro com Beto havia terminado, era uma decisão irreversível.
             
Uma semana depois, recebi uma ligação de Fernando. Ele parecia feliz, pois havia conseguido um substituto para mim. “E foi difícil?”, quis saber, cheia de curiosidade. “Difícil foi convencer minha mãe de que você não voltaria, pois estava enfrentando problemas familiares”, disse. “Pura verdade”, lamentei. “Mas encontraram a pessoa certa para as leituras de Eleonora, certo?” Ele respirou fundo do outro lado, depois completou: “Certíssimo, Eleonora sugeriu e eu acatei na hora. Contratamos Beto, seu namorado. Sei que minha mãe continuará em muito boas mãos”. Falei “boa sorte”, desliguei e desci correndo as escadas. Estava atrasada para a primeira aula da manhã. 
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