(Luís Augusto Cassas)
O ano
do fim do mundo (o mais recente) levou de nós alguns camaradas: Airton Monte
(meu velho amigo, de antes da revista O
Saco), o bardo Barros Pinho (gestor cultural), Lustosa da Costa (com quem
me encontrava com frequência em Brasília e Fortaleza) e Manuel Soares Bulcão (de
quem tive o prazer de me aproximar, há alguns anos). Não quero, porém, dedicar
este dia a eles, pois já lhes devoto minhas insônias, minhas angústias e minhas
alegrias, que são diárias. Quero oferecer este penúltimo dia de 2012 a Luís
Augusto Cassas. Não exatamente a ele (de quem não tenho conhecimento pessoal),
mas à sua criação poética. Ou à belíssima edição, pela Editora Imago, de sua
obra completa, em dois grossos volumes, com capa dura. Seus escritos eu os pervago
há anos. Não sei dizer desde quando. Só sei que eu morava em Brasília. Então
esse tempo é anterior a 2002. Tenho dele diversas coleções de poemas. Não direi
quais, por falta de disposição de ir ao aposento dos criadores modelares de
versos. (Minha casa não é comprida nem larga, mas dividi-a em cinco ambientes
literários. Há um quarto de cearenses, outro de peças raras, um de dicionários,
enciclopédias, manuais, gramáticas, etc. Ora, isto não interessa a ninguém,
muito menos aos leitores. Passemos, pois, diretamente ao inventário poético de
Cassas).
Esta
crônica, no entanto, irá além dos dois tomos enviados, em caixinha de papelão,
pelo vate de São Luís. As capas (duras) são idênticas: a mesma foto em preto e
branco (o poeta sentado diante de um casarão ou na Escadaria do Comércio, na
capital maranhense, a ler um impresso). O título do repertório: A poesia sou eu. No conjunto número um o
“eu” é azul; no segundo, amarelo. Quase 700 páginas num, outro tanto noutro. Consoante
anunciei, não destinarei estes apontamentos apenas aos livros e à arte de
Cassas, pois pretendo apresentar também quatro pessoas que me visitaram hoje.
Porque passamos a tarde (agora é quase meia-noite) a ler e comentar as pérolas
do autor de República dos Becos (sua
estréia, em 1981). Os quatro leitores são Luciano de Barros, Paulo Veronese,
Tamara Sobral e Genésia Jacó. Quem são eles? Não tenham pressa. Direi, ao longo
deste relato.
Para
contar a história desde o começo, devo informar que não conhecia ainda os três
últimos personagens. O primeiro me chegou, semana passada, afogueado. Parecia fugido
de assaltantes ou da polícia (o que dá no mesmo). Antes, telefonara e mandara
mensagens eletrônicas: “Sou escritor, embora ainda inédito”; “tenho lido as
suas crônicas na Internet”; “não concordo com algumas de suas opiniões,
principalmente quando se faz muito ferino”. Pareceu-me leal, inteligente e sagaz.
Ofereci-lhe minha obra completa. Se for preguiçoso e tiver vida longa, poderá
passar meio século de olhos afundados em minhas prosas. De quebra, emprestei-lhe
um dos volumes das composições de Luís Augusto Cassas: “Volte semana que vem,
para trocarmos umas ideias”. Voltou com Paulo, Tamara e Genésia.
Após os
salamaleques (abraços, beijinhos, apertos de mão), convidei-os a sentarem-se nos
sofás. Luciano arrastou, pelo braço, o amigo e o sentou ao seu lado. Tamara fez
o mesmo gesto com a amiga. Eu me satisfiz comigo mesmo e me acomodei na cadeira
de balanço nova, presente de Fernanda, minha filha mais velha. Sem delongas,
dei início do interrogatório: “Leu tudo?” A resposta veio ferina: “Tudo não,
todo”. Irritei-me (por dentro). Os outros riram (talvez rissem de minha cara).
Tive vontade de lhes lançar os dois objetos, às caras. Não o fiz, porém lhes
disse, raivoso: “Lerei uns poemas e, a seguir, faremos comentários”.
Aleatoriamente, pus-me a ler “Auto do retrato”: “Este corpo não é meu / Visto-o
como emprestado / a algum nobre antepassado / que dentro em mim se escondeu”.
Li toda a peça, que tem quatro estrofes de quatro linhas cada. E li outros, por
uns dez minutos. Larguei a publicação sobre a mesinha e me virei para Luciano.
As meninas sorriram, Paulinho lambeu os lábios. O futuro escritor se pôs a
falar: “Cassas não é muito apegado a rimas, nem a versos medidos. Navega mais no
versilibrismo. Usa a rima até em forma de brincadeira. Vê-se isto em ‘O
vendedor de bananas’: banana-prata / pra quem tem medo de vaca // banana-maçã /
pra quem chega de manhã. E assim vai até o final chulo e dúbio (lembram certas
letras de forró)”. Virou-se para o amigo e o abraçou, de lado. Deu-lhe também
um beijo no rosto.
Depois
de mais de uma hora de leituras e falas, ofereci-lhes água, suco, cerveja ou
vinho. “Não pode ser tudo; é preciso optar por uma das bebidas”. Luciano
aceitou cerveja, Paulo quis suco (de quê?), Tamara preferiu vinho, e Genésia
não teve opção: seguiu o conselho da amiga. Convoquei-os à copa e à adega.
Admiraram-se de tantas garrafas. O escritor inédito bateu nas minhas costas: “O
senhor é um legítimo cachaceiro, hem?” Servimo-nos na sala de refeições (não
tenho mais um bar em casa) e lá mesmo voltei à leitura de Cassas: “Quem são
estes herdeiros dos dois caminhos / que trocaram o fulgor da coroa de louros /
pela coroa de espinhos?” / Quem são estes que lavaram / as mãos sujas de
espanto / no lírio de todos os prantos?” Fui interrompido por uma sequência de
miados. O gato da vizinha andava pelo muro que me separa dela e seus
familiares. Paulo Veronese se levantou, abruptamente, a rebolar-se: “Que lindo
gatinho!” Tamara Sobral me pediu para concluir a leitura do salmo. E leu.
Depois definiu: “Este é um poeta do caralho. Como escreve bem o desgraçado!” Contive-a:
“Casas mergulha aos mais fundos abismos do ser humano. Porém, tanto navega na
História, na tradição, no legado cultural (a essência da vida e da humanidade),
quanto no cotidiano das pessoas. Assim o fizeram os menestréis mais soberbos”.
Luciano me arrebatou a palavra e o livro (o tomo primeiro): “ontem acordei /
como uma barata / e seus exórdios / (não como um rato / e o seu nó górdio / não
como um dinossauro / e os seus piolhos) / a cidade uma praga / voava: enxame de
tijolos / porcos de dostoievski / devoravam as minhas asas”. Vejam as rimas graves
“exórdios/górdio” e atentem para as rimas raras e imperfeitas
“piolhos/tijolos”, “praga/asas”. Além disso, o título “Kafka-Dostoievski” é uma
verdadeira síntese do poema. A suma de uma literatura feita de horror.
Beberiquei cerveja. Luciano alisava as costas do raquítico Paulo, que me examinava
enigmaticamente. Tamara acariciava a cabecinha de Genésia deitada em seu colo
farto. “Perceberam a referência à cidade onde viveu Kafka, em ‘a cidade uma
praga’?”
Ainda
lemos muito naquela tarde tão dionisíaca. Consumimos mais de dez latinhas de
cerveja, uma garrafa de vinho, além de água e suco. Todos pareciam muito
satisfeitos. Talvez felizes. Luciano pediu desculpas pelas brincadeiras. Tamara
não deixava meu olho atento me aproximar mais de sua amiguinha. Tonto, abracei
um a um e me despedi deles: “Quero vê-los de novo aqui. Cassas é inesgotável,
como o infinito tonel de vinho dos deuses”. Lembrei-me de novo de meus amigos
Airton Monte, Barros Pinho, Lustosa da Costa e Manuel Bulcão. Todos bons
bebedores. Com eles bebi muita vida. E faz tão pouco tempo estivemos no mesmo
bar, à mesma mesa, tão embebidos de beleza.
Fortaleza,
30 de dezembro de 2012.
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