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quarta-feira, 2 de janeiro de 2013

O tonel de vinho dos deuses (Nilto Maciel)



(Luís Augusto Cassas)

O ano do fim do mundo (o mais recente) levou de nós alguns camaradas: Airton Monte (meu velho amigo, de antes da revista O Saco), o bardo Barros Pinho (gestor cultural), Lustosa da Costa (com quem me encontrava com frequência em Brasília e Fortaleza) e Manuel Soares Bulcão (de quem tive o prazer de me aproximar, há alguns anos). Não quero, porém, dedicar este dia a eles, pois já lhes devoto minhas insônias, minhas angústias e minhas alegrias, que são diárias. Quero oferecer este penúltimo dia de 2012 a Luís Augusto Cassas. Não exatamente a ele (de quem não tenho conhecimento pessoal), mas à sua criação poética. Ou à belíssima edição, pela Editora Imago, de sua obra completa, em dois grossos volumes, com capa dura. Seus escritos eu os pervago há anos. Não sei dizer desde quando. Só sei que eu morava em Brasília. Então esse tempo é anterior a 2002. Tenho dele diversas coleções de poemas. Não direi quais, por falta de disposição de ir ao aposento dos criadores modelares de versos. (Minha casa não é comprida nem larga, mas dividi-a em cinco ambientes literários. Há um quarto de cearenses, outro de peças raras, um de dicionários, enciclopédias, manuais, gramáticas, etc. Ora, isto não interessa a ninguém, muito menos aos leitores. Passemos, pois, diretamente ao inventário poético de Cassas).

          Esta crônica, no entanto, irá além dos dois tomos enviados, em caixinha de papelão, pelo vate de São Luís. As capas (duras) são idênticas: a mesma foto em preto e branco (o poeta sentado diante de um casarão ou na Escadaria do Comércio, na capital maranhense, a ler um impresso). O título do repertório: A poesia sou eu. No conjunto número um o “eu” é azul; no segundo, amarelo. Quase 700 páginas num, outro tanto noutro. Consoante anunciei, não destinarei estes apontamentos apenas aos livros e à arte de Cassas, pois pretendo apresentar também quatro pessoas que me visitaram hoje. Porque passamos a tarde (agora é quase meia-noite) a ler e comentar as pérolas do autor de República dos Becos (sua estréia, em 1981). Os quatro leitores são Luciano de Barros, Paulo Veronese, Tamara Sobral e Genésia Jacó. Quem são eles? Não tenham pressa. Direi, ao longo deste relato.

Para contar a história desde o começo, devo informar que não conhecia ainda os três últimos personagens. O primeiro me chegou, semana passada, afogueado. Parecia fugido de assaltantes ou da polícia (o que dá no mesmo). Antes, telefonara e mandara mensagens eletrônicas: “Sou escritor, embora ainda inédito”; “tenho lido as suas crônicas na Internet”; “não concordo com algumas de suas opiniões, principalmente quando se faz muito ferino”. Pareceu-me leal, inteligente e sagaz. Ofereci-lhe minha obra completa. Se for preguiçoso e tiver vida longa, poderá passar meio século de olhos afundados em minhas prosas. De quebra, emprestei-lhe um dos volumes das composições de Luís Augusto Cassas: “Volte semana que vem, para trocarmos umas ideias”. Voltou com Paulo, Tamara e Genésia.

Após os salamaleques (abraços, beijinhos, apertos de mão), convidei-os a sentarem-se nos sofás. Luciano arrastou, pelo braço, o amigo e o sentou ao seu lado. Tamara fez o mesmo gesto com a amiga. Eu me satisfiz comigo mesmo e me acomodei na cadeira de balanço nova, presente de Fernanda, minha filha mais velha. Sem delongas, dei início do interrogatório: “Leu tudo?” A resposta veio ferina: “Tudo não, todo”. Irritei-me (por dentro). Os outros riram (talvez rissem de minha cara). Tive vontade de lhes lançar os dois objetos, às caras. Não o fiz, porém lhes disse, raivoso: “Lerei uns poemas e, a seguir, faremos comentários”. Aleatoriamente, pus-me a ler “Auto do retrato”: “Este corpo não é meu / Visto-o como emprestado / a algum nobre antepassado / que dentro em mim se escondeu”. Li toda a peça, que tem quatro estrofes de quatro linhas cada. E li outros, por uns dez minutos. Larguei a publicação sobre a mesinha e me virei para Luciano. As meninas sorriram, Paulinho lambeu os lábios. O futuro escritor se pôs a falar: “Cassas não é muito apegado a rimas, nem a versos medidos. Navega mais no versilibrismo. Usa a rima até em forma de brincadeira. Vê-se isto em ‘O vendedor de bananas’: banana-prata / pra quem tem medo de vaca // banana-maçã / pra quem chega de manhã. E assim vai até o final chulo e dúbio (lembram certas letras de forró)”. Virou-se para o amigo e o abraçou, de lado. Deu-lhe também um beijo no rosto.
 
Depois de mais de uma hora de leituras e falas, ofereci-lhes água, suco, cerveja ou vinho. “Não pode ser tudo; é preciso optar por uma das bebidas”. Luciano aceitou cerveja, Paulo quis suco (de quê?), Tamara preferiu vinho, e Genésia não teve opção: seguiu o conselho da amiga. Convoquei-os à copa e à adega. Admiraram-se de tantas garrafas. O escritor inédito bateu nas minhas costas: “O senhor é um legítimo cachaceiro, hem?” Servimo-nos na sala de refeições (não tenho mais um bar em casa) e lá mesmo voltei à leitura de Cassas: “Quem são estes herdeiros dos dois caminhos / que trocaram o fulgor da coroa de louros / pela coroa de espinhos?” / Quem são estes que lavaram / as mãos sujas de espanto / no lírio de todos os prantos?” Fui interrompido por uma sequência de miados. O gato da vizinha andava pelo muro que me separa dela e seus familiares. Paulo Veronese se levantou, abruptamente, a rebolar-se: “Que lindo gatinho!” Tamara Sobral me pediu para concluir a leitura do salmo. E leu. Depois definiu: “Este é um poeta do caralho. Como escreve bem o desgraçado!” Contive-a: “Casas mergulha aos mais fundos abismos do ser humano. Porém, tanto navega na História, na tradição, no legado cultural (a essência da vida e da humanidade), quanto no cotidiano das pessoas. Assim o fizeram os menestréis mais soberbos”. Luciano me arrebatou a palavra e o livro (o tomo primeiro): “ontem acordei / como uma barata / e seus exórdios / (não como um rato / e o seu nó górdio / não como um dinossauro / e os seus piolhos) / a cidade uma praga / voava: enxame de tijolos / porcos de dostoievski / devoravam as minhas asas”. Vejam as rimas graves “exórdios/górdio” e atentem para as rimas raras e imperfeitas “piolhos/tijolos”, “praga/asas”. Além disso, o título “Kafka-Dostoievski” é uma verdadeira síntese do poema. A suma de uma literatura feita de horror. Beberiquei cerveja. Luciano alisava as costas do raquítico Paulo, que me examinava enigmaticamente. Tamara acariciava a cabecinha de Genésia deitada em seu colo farto. “Perceberam a referência à cidade onde viveu Kafka, em ‘a cidade uma praga’?” 

Ainda lemos muito naquela tarde tão dionisíaca. Consumimos mais de dez latinhas de cerveja, uma garrafa de vinho, além de água e suco. Todos pareciam muito satisfeitos. Talvez felizes. Luciano pediu desculpas pelas brincadeiras. Tamara não deixava meu olho atento me aproximar mais de sua amiguinha. Tonto, abracei um a um e me despedi deles: “Quero vê-los de novo aqui. Cassas é inesgotável, como o infinito tonel de vinho dos deuses”. Lembrei-me de novo de meus amigos Airton Monte, Barros Pinho, Lustosa da Costa e Manuel Bulcão. Todos bons bebedores. Com eles bebi muita vida. E faz tão pouco tempo estivemos no mesmo bar, à mesma mesa, tão embebidos de beleza.

Fortaleza, 30 de dezembro de 2012.
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