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quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

O conto perdido (Assis Coelho)





Já inúmeras vezes, repetia a mesma pergunta para sua esposa. Não havia visto um conto que deixara sobre a mesa de seu escritório? Era impossível haver algum canto da casa que não houvesse sido esquadrinhado. Por mais inadequado que fosse o local, não deixou de procurar. Sabe-se lá o que o entorpecimento alcoólico é capaz de fazer? Talvez a ânsia de não ser plagiado e a busca irrefreada pelo  reconhecimento o fizeram esconder em local inacessível, que até ele mesmo não era capaz de conceber tal esconderijo. Sabia da aversão e indiferença de sua mulher pelos livros, sobretudo por tudo que fosse ligado a literatura, coisa que ela considerava de somenos importância ou mero passatempo de desocupados. Aquele conto, entre outras coisas, seria também capaz de mudar a opinião sempre depreciativa da sua mulher que por anos perguntava: o que esta tal de literatura te traz de bom? Por que ela não te ajuda a sair dessa vida de merda que levamos? Por que tu e teus parceiros perdem horas e horas esvaziando garrafas e falando de um tal de Kafka, um tal de Dostoi não sei o que, um  tal de Guimarães  Rosas e  outras criaturas de nomes esquisitos, me diga pra quê? Dessa vez ela saberia. Até que enfim conseguira o que sempre sonhou. Recentemente havia escrito o conto que sempre sonhara. Logo estaria fazendo parte de antologias em todas as livrarias brasileiras e, talvez, em antologias estrangeiras. Calaria a boca de muitos escritorezinhos que haviam publicado alguns continhos em alguns jornalecos e se consideravam uns Tchekhov ou, no mínimo, um Maupassant. Sabia que agora, sem a cegueira da auto-afirmação e sem os arroubos do narcisismo, havia escrito o conto definitivo de toda sua vida obscura de contista.
           
        Parecia mesmo destinado ao ostracismo.  Logo agora que tivera o esmero com a linguagem, a escolha irrepreensível do tema, a adequação do título, não se perdera na prolixidade de frases desconexas. Enfim, havia concebido o conto que considerava dentro do mais refinado padrão da arte contística. Agora que deixaria de ser considerado apenas um diletante, veio a perder sua obra que, indubitavelmente, o colocaria na lista dos melhores contistas nacionais. Talvez a inveja de seus pares tenha contribuído para tal. Cético, não acreditava em poderes fantasmagóricos. Foi, certamente, seu peculiar desleixo com suas coisas. O não saber selecionar, catalogar, ordenar e arquivar, eliminar o supérfluo entre outras mazelas tão frequentemente enumeradas por sua esposa. Não pararia de procurar e logo editar essa pequena obra que culminaria no tão desejado reconhecimento, sobretudo daquela que sempre o depreciou. Às vezes, reconhecia que havia supervalorizado a literatura. Mas, o que fazer, se outras leituras eram torturantes? Não levava a sério um ser que não gostasse de tal coisa. Não havia uns que chegavam a gostar de ciências? Até de matemática, alguns se deleitavam com a Física Quântica. Que se deleitassem com suas iguarias! Seu mundo só tinha significado com contos, poemas; às vezes, alguns romances. Este era o seu mundo, no qual estava prestes a ser um dos componentes. Estaria lado a lado de João Antônio, J. J. Veiga, Dalton Trevisan, Rubem Fonseca e tantos outros que eram seus ídolos incontestes. Quem quisesse que elegesse outros. Era com estes que a vida se tornava mais tolerável. Teria paciência, afinal todos dizem que é preciso cultivá-la, domá-la, bla, blá. Blá ...

Depois de ver tanto sofrimento e a eventualidade de surto psicótico, sua mulher até resolveu ajudá-lo na busca. Ele lhe disse do azul das páginas, da quantidade, do título e de algumas palavras contidas no texto, do local que deixara, etc.

Ela não teve coragem, como em outras vezes, de lhe dizer a verdade. Foi na semana passada que ficaram sem dinheiro para irem ao supermercado. Estava faltando quase de tudo em casa. O pagamento atrasado. Ela lembrou-se, e ficou muda sobre o que ocorreu. Até papel higiênico faltou. Na falta deste amassou as tais folhas e as usou como papel higiênico. Pra que tanto estudo? pensava. A esta hora, a grande obra estaria, quase com certeza, entre outros lixos em um lixão qualquer. E ela continuava a ajudá-lo na procura frenética, mesmo sabendo que inutilmente.             

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