(Alexandre Brandão)
O
Brasil é tão grande que... Não, não iniciarei este artigo com uma queixa. Além
do mais, já se tornou truísmo a frase: “Os escritores brasileiros não são
conhecidos nacionalmente porque o Brasil é um continente”. Meu objetivo aqui não
é tratar de assunto tão polêmico. Tenciono apenas comentar três papiros — Contos de homem (1995), Estão todos aqui (2005) e A câmera e a pena (2009) — do
desconhecido Alexandre Brandão, mineiro que mora no Rio de Janeiro, escreve contos
e novelas, etc.
Nos Contos de homem, a paisagem carioca
aparece aqui e ali. Não como descrição, mas apenas menção a nomes de
logradouros: “Andando pela Avenida Copacabana” (p. 29); “Chego à Avenida das
Américas, tomo o ônibus 223, salto no quinto ponto do bairro judeu...” (p. 41);
“perto da favela da Mangueira” (p. 53); “fomos morar na enseada de Botafogo”
(p. 68); “Viera para o Rio tentar vestibular” (p. 69); Sálvio “busca as poucas
sombras que o centro do Rio admite” (p. 95). No mais, o leitor não distingue onde se passam
as ações: “a rua é uma festa de luzes de propagandas” (p. 17), o que pode
levá-lo a qualquer cidade. E isso não tem importância, é mero detalhe.
Em Estão todos aqui se dá o mesmo, como se
verifica na primeira peça: “O avião aterrissou no Santos Dumont” (p. 14). Nomes
de algumas vias são referidos quase sem necessidade, como se vê à p. 16: “o
táxi ia pegar a Barata Ribeiro”, “na altura da Bolívar”, “no sentido de
Ipanema”.
É de se
notar, da mesma forma, em Contos de homem,
a presença, sem rodeios, da obra de Machado de Assis, quer na vida ou na
lembrança de personagens, quer na recriação de “Missa do galo”, recontada por
uma jovem. Dom Casmurro aparece em “A primeira leitura”, no qual
Maurício narra suas agruras de adolescente: “A leitura me faz mal, é isso. O
tal Casmurro me confunde”. Menciona-se o nome de Cecília Meireles, em “Traços”.
A prosa
de Alexandre se pauta pelo código do realismo urbano. Código é termo científico
e, contraditoriamente, mentiroso. Porque as tendências em arte não são fruto de
capricho de um ou mais gênios, de um ou mais revolucionários, de um ou mais inovadores.
Pois vejamos o caso desse escritor: apesar de seus dramas serem realistas, há
uma composição, “A novidade”, que parece deslizar para o fantástico.
Em A câmera e a pena, constituído de duas
novelas, Alexandre Brandão divide a primeira (“Um pouco mais que um diretor”)
em quatro blocos: em “Dias de filmagem” são 25 pequenos capítulos numerados
(XXV), seguido de “Créditos em movimento”, “Argumento” e “Um telefonema no meio
da noite”. Tudo gira nela em torno de uma filmagem. As ações no set e fora dele são contadas
pausadamente, por narrador onisciente. Desde a primeira “cena” (não a do filme,
mas a da novela) percebe o leitor essa lentidão de movimentos, com regressões
contínuas e até digressões. Na primeira linha: “acordou cedo, muito antes da
hora”; no quarto parágrafo se dá o segundo ato do personagem: “Abriu o
chuveiro” (...). Entre um e outro, o narrador se volta para o ambiente (“Lá
fora, uma luz de nada forjando uma silenciosa manhã”...), faz lucubrações
(“devaneios, logo transformados em planos, ou desejos: um troço muito parecido
com medo”) e faz passeios pelo tempo passado (“os primeiros testes, a passagem
do texto, deram a ele a convicção de ter”...). Como nos filmes de enredo obscuro
ou não-linear, na novela Alexandre baralha o tempo da narração, totalmente
afastado da sequência do calendário, porém sem nenhuma confusão.
A
linguagem de Estão todos aqui parece
menos cuidada do que a da primeira experiência. Encontram-se repetidos chavões,
não apenas nas falas dos seres fictícios, mas, de modo análogo, nas narrações
propriamente ditas: “diga-se de passagem” (p. 26), “com juros e correção
monetária” (p. 33), “está careca de saber” (p. 87). Quase sempre os diálogos de
Alexandre são curtos, isto é, de poucas falas, e estas igualmente breves, a
maioria de uma linha: “— Eu. / — Você já sabe, não é? / — Sim. Sei. / — Você
está no Rio? Vai vê-la? / — Que idéia! / — Vamos juntos?” (p. 15)
Aliás,
Alexandre não é de se esparramar nas frases. É contido. Ou, como dizem os
críticos literários e os gramáticos, cultiva a frase picotada, jornalística,
fragmentada. Que tem, pelo menos, dois flancos positivos: facilita a
compreensão do ledor e evita confusão (frase desconexa), ambiguidade e certos
defeitos muitas vezes embutidos em frases mais longas.
Os
personagens de Contos de homem são,
na maioria, pessoas como as que vemos nas ruas ou com quem convivemos. Um ou
outro vem do além ou vive em esfera bem distante da Terra, como em “A
novidade”. O narrador assim se manifesta, já quase no final: “Vamos à sua
curiosidade sobre o porquê de eu me haver matado”. Sabemos não ser nenhuma
novidade esse expediente ou artifício de dar voz aos mortos. Machado de Assis e
mais alguns mestres se valeram disso.
Em Estão todos aqui também se observa a
presença preponderante de pessoas comuns, da gente do povo e, em consequência,
o desenvolvimento de episódios do cotidiano das grandes cidades (ver “Outra
fila brasileira”, muito próximo da crônica). E isto talvez explique o emprego
de alguns clichês.
Por
outro lado (conectores, expressões e locuções são parentes dos chavões), a
busca da simplicidade (de enredo) pode levar o ficcionista à vulgaridade e à
cronicidade. Às vezes, conduz à anedota e à “literatura infantil” (há alguns
anos, expus reflexão a respeito disso, no artigo “Wilson Pereira: Narrativas
poéticas”, inserto em Gregotins de
desaprendiz, no prelo). É o
que se vê em “Domingo cuidamos dos filhos”.
A
maioria das composições Contos de homem
foi tecida com muita exposição de acontecimentos e alguns diálogos de permeio.
A narração é quase toda na voz de um personagem. Algumas vezes, na terceira
pessoa. Aqui e ali o leitor fica na dúvida: há um “ser” real por trás da fala
ou tudo é narrado por um “ser” onisciente e onipresente? Em Estão todos aqui se verifica preponderância
de enredos em terceira pessoa, bem como de poucos figurantes na trama. Veja-se
“O que vai dentro da caixa”: apenas Gabriel, Melissa (prestes a ser enterrada),
Paulo e Maria. Nem poderia ser diferente, ora porque teoricamente o conto, como
gênero narrativo, não comporta muitos personagens, ora porque nele o tempo da
narrativa é breve (e, portanto, a quantidade de frases segue caminho semelhante).
Apesar
da preocupação do autor de não criar confusão na cabeça do leitor com a exibição
de muitos personagens, vê-se nele uma tendência a espichar o enredo, às vezes em
diálogos dispensáveis e narrações de ações secundárias (“O dia de hoje”).
Quando reduz a participação dos comparsas no conflito, consegue melhores
resultados (relatos mais concisos da primeira coleção).
Muito
se pode observar após leitura de um livro, mesmo simples opúsculo ou menos
intricado. Entretanto, não quero me perder nestes comentários de leitor sonolento,
preguiçoso e de vocabulário minguado. Só pretendo arrematar este escrito assim:
Alexandre Brandão é ficcionista de fôlego, conhece as veredas da arte de
narrar, sabe lidar com o vocabulário e a gramática e tem talento. E ainda isto:
prefiro seus contos mais enxutos aos de menor duração e às novelas.
Fortaleza,
10/11 de fevereiro de 2013.
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