Nunca me ocorreu interrogar minha avó sobre sua
admiração por Vauvernagues [1715-1747], cujas máximas – citadas quase sempre
para aclarar uma circunstância ou servir de esteio a uma lição – lastrearam, de
alguma forma, a minha educação.
Minha avó o lia num pequeno volume encadernado
em couro de porco, o nome do autor gravado em letras de ouro com duplos
marcadores de cetim púrpura. O uso constante e obstinado que dele fazia aquela
ledora desde o seu tempo de solteira, no Ceará-Mirim, até a sua segunda viuvez
no Estevão, quando o livro desapareceu e nunca mais o vi em parte alguma, a não
ser em minha memória, com as suas páginas já amarelecidas, impregnadas de
vivências, recendendo ao delicado odor do seu suor.
Suponho que foi um presente do seu professor de
inglês e latim, o poeta Abner de Brito, que pousou por algum tempo no
Ceará-Mirim, antes de sua mudança definitiva para o Paraná, de onde nunca mais
regressou ao Rio Grande do Norte que lhe fora tão hostil e adverso.
Curiosamente, era Vauvernagues o autor que a grande atriz Glauce Rocha lia,
quando na companhia de minha avó a visitamos em seu apartamento no Grande
Hotel. Foi esse volume que ela me presenteou com uma bela dedicatória, como uma
lembrança desse encontro, há quase quarenta anos, quando – respondendo à sua
indagação sobre o que eu queria ser – disse-lhe, num ímpeto de arrogância
juvenil, que desejava ser “escritor ou nada”...
Na última sexta-feira, ao comparecer à
conferência do professor Ailton Siqueira sobre Clarice Lispector, na Potylivro
de Doze Anos, deparei com uma nova edição de Vauvernagues, em cujo castelo
Picasso, glorificado por seu talento, viveu seus últimos anos em meio a uma
profusão de obras de arte. Senti, ao folheá-lo, a presença invisível de minha
avó, que me trazia de volta alguns momentos inesquecíveis de minha infância
rural no Estevão, quando ela, em seus momentos de solidão e recolhimento,
perlustrava suas máximas e reflexões que recreavam o seu espírito e ao mesmo
tempo propiciava-lhe o recheio de minha educação sentimental sem que eu o
suspeitasse.
Já rapazinho, quando Glauce me presenteou com o
seu exemplar de Vauvernagues, pude ler pela primeira vez o filósofo e com muita
surpresa percebi que algumas das lições prodigadas por minha avó haviam saído
das reflexões do autor daquelas “Reflexões
e Máximas”, em boa hora reeditada pela UNESP em tradução de Dorothée de
Bruchard e Fúlvia Maria Luiza Moreto. Confesso que passei aquela hora dividido
entre o que dizia Ailton sobre Clarice e a sorrateira leitura de Vauvernagues,
o que eu tentava fazer sem privar-me da performance do conferencista que,
dominado pela paixão lispectoriana, empolgava os presentes com as suas
considerações.
De repente, conscientizei-me de que muitos dos
conselhos que ouvira de minha avó ela os tomara emprestado do querido marquês.
Em minhas primeiras tentativas de aspirante a escritor, ela instruía-me que o
fizesse prezando a clareza, reforçando suas palavras com uma sentença que
sempre tive presente em minha memória toda vez em que me dispunha a escrever
uma página. A clareza embeleza os pensamentos profundos.
Outras vezes, quando eu me afadigava a ponto de
pensar em desistir, ela me socorria, me pedindo que
fosse perseverante, e reiterava que as fortunas rápidas de todo tipo são as
menos sólidas, pois raramente são obra do mérito. Os frutos maduros, porém
laboriosos da prudência – pude eu próprio
descobrir depois –, são sempre tardios. E
que, quem sabe suportar tudo, pode ousar tudo.
E, ao insistir para que eu procurasse aprimorar
os meus esforços, advertia-me de que a satisfação não é a marca do mérito, pois
nem o espírito nem a vaidade podem fazer o gênio. Ou, ainda, que a indolência é
o sono dos espíritos e a limpidez, o verniz dos mestres, assim como a clareza é
a boa-fé dos filósofos. E que a perfeição de um relógio não está na rapidez,
mas na precisão...
Todas essas lições que impregnaram a minha
infância, minha avó as absorvera de Luc de Clapier, marquês de Vauvernagues,
grande escritor francês da primeira metade do século XVIII, nascido em
Aix-em-Provence, de família nobre, porém sem fortuna e destinado a uma vida
difícil, como a de todos aqueles que buscaram a glória pela virtude e souberam
por intuição ou ciência própria que ganhamos pouco com a esperteza e que não
temos o direito de tornar infelizes aqueles que não podemos tornar bons.
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