A maioria das publicações trazidas à minha casa vem de amigos. Como
recebo diariamente, pelo menos, um impresso, a conclusão é estarrecedora (no
bom sentido): tenho amigos para o ano todo. Estão ali, doidos por um afago,
cerca de uma dúzia deles (os tomos, não os amigos). Pisquei o olho para cada um
e murmurei: Venham cá, seus malandros. E trouxe ao colo três dos mais afoitos: Vagem
de vidro, Coeur sans frein e Uma sombra no espelho. São de Salomão
Sousa (meu amigo há mais de 30 anos), Astrid Cabral (minha amiga desde os bons
tempos de Brasília) e Dimas Carvalho (que mora bem ali, em Acaraú, mas telefona
para mim todo santo dia – de licença, em Fortaleza – e
me convida a almoçar, de vez em quando, ou, nas noites de muita solidão e
tédio, para visitar uma cunhã qualquer).
Salomão Sousa
Poeta moderníssimo, Salomão tem adotado todos os procedimentos do verso
em suas modalidades mais novas, desde o livro inaugural de sua trajetória, A
moenda dos dias, que é de 1979. No entanto, não copia ninguém e não se
repete. Conhece os múltiplos caminhos da poesia (e da prosa também, seja ela
ficcional, filosófica ou estrambótica).
Neste novo empreendimento verbal – Vagem de vidro –, o
menestrel de Silvânia/Brasília apresenta cantos sem título (uns divididos em
estrofes). E dá o pontapé inicial assim, com força, vigor ou garra: “Todo
preâmbulo inaugura o medo”. Porque Salomão vem de antes, do tempo de Homero, de
gregos e troianos, dos vates latinos, dos descobridores da Grécia (a Hélade e
seus mitos), dos rapsodos modernos aos mais recentes. Vem pleno de poesia, de
metapoesia, metalinguagem, em metapoemas de diversos feitios, vem inflado de
enigmas, mistérios, ambiguidades, metáforas e parábolas. Vem entranhado de
intertextualidade. Com citações e referências à melhor literatura nacional e
estrangeira. Essa percepção advém de inúmeras e ricas leituras. Sem qualquer
vassalagem a esta ou aquela tendência literária ou autor, por mais admiração
que nutra por certos ícones da arte da escrita. Não, Salomão tem um léxico
próprio, ou intertextualizado. E assim o dizemos, sem medo de ofendê-lo; pelo
contrário, pois só quem lê muito, quem tem clara noção do mundo e suas
profundezas, dos seres, seus comportamentos e suas expressões, é capaz de
cultivar a paráfrase, ou de se envolver no processo de recriação da linguagem.
Essas incursões ao passado histórico ou literário não significam, no
entanto, regressões, mas construções de pontes para o presente (seu e da
sociedade): “E se houvesse entendimento ou / a extinção da linha do tempo, /
quem iria recolher o sal, / construir a alvura ou / estrear o lençol e a luz?”
(p. 13). O passado ele o traz para o seu (o nosso) presente (mundo, realidade),
as agruras, as misérias, as iniquidades do homem moderno: “O edema, o sequestro
relâmpago. É a ausência do fluir. / Se não há herói para ir a Ítaca, à
Esplanada, / os homens a enrijecer-se” (p. 21); “a balconista que surgirá /
ensanguentada no noticiário nacional” (p. 26); “a bala perdida / na mãe de uma
criança ao colo” (p. 34).
Astrid Cabral
O segundo conjunto veio do Rio de Janeiro, em português e francês. Mal
consigo ler o português brasileiro (o da Coroa nem ouso pronunciar), imaginem a
língua de Paris. Não importa, Astrid; serei breve. Na capa, somente a
denominação estrangeira: Coeur sans frein. Na folha de rosto, o
título nos dois idiomas: Coração à solta, sobreposto a Coeur
sans frein (de cabeça para baixo). Na capa e na segunda folha: “traduit
librement du brésilien par l’auteure”. São hinos de amor, obviamente. Do
começo ao fim: “Amor como tremor de terra / abalando montanhas e minérios / nas
entranhas da minha carne”. Assim traduzidos (os versos): “Amour, tremblement
de terre / secouant montagnes, minéraux / dans les entrailles de ma chair”.
Nesse volume, a poetisa não se peja de utilizar a primeira pessoa (eu
lírico) para relatar peripécias do amor, em cânticos fesceninos e de nudez, de
corpos em conluio, como o praticaram exímios criadores desde o início dos
tempos da mais astuta racionalidade do sexo, em Lesbos (Safo), com os bardos
gregos (Anacreonte). “Crava em meu corpo essa espada crua. / Quero o ardor e o
êxtase da luta / em que me rendo voluntária e nua”. Em francês: "Enfonce
dans mon corps cette épée crue. / Je veux l’ardeur et l’extase de la lutte / à
laquelle je me rends volontaire et nue”.
Exercita-se também Astrid nas formas verbais da narração
(narradora/espectadora), na revelação dos dramas amorosos dos outros ou de
personagens: “Moravam na mesma casa / mas em variados mundos./ (...) Em solidão
se espelhavam”. Em francês: “Ils habitaient la même maison / mais dans des
mondes différents. / (...) En solitude ils se réfléchissaient”.
A linguagem poética de Astrid Cabral nessas jóias só raramente se
esfumaça em construções simples, do nosso cotidiano, em constatações ou
afirmações. Disso são exemplo versos como estes: “atear-lhe urgente o fogo do
amor”. Ou estes mais exuberantes, mais gritantes: “Ao lado de um orgasmo / que
são palmas e aplausos?” O poemeto “Sem maquilagem” é quase minicrônica.
Dimas Carvalho
O mais jovem dos três trovadores também está maduro. Não de hoje (há
tempos comentei outra brochura dele e o fiz com louvores). Com este Uma
sombra no espelho, Dimas demonstra toda a sua erudição. Desde o portal da
casa, com um soneto (“Pórtico”), à maneira de confessionalismo de mártir: “o
que eu escrevo é a queixa / de quem já fui, de quem eu mais não sou”. Seguem-se
umas quadras (ele que é viajante do Brasil e do mundo) mineiras (escritas em
São João Del Rey).
Num passar de vista abrangente e sem grandes preocupações estéticas, o leitor
comum veria um pouco de Bocage, outro tanto de Antero de Quental, talvez uns
resquícios de Fernando Pessoa e Mário de Sá Carneiro (Dimas é contumaz leitor
da poesia portuguesa, como o é de toda a boa poesia) em certas peças desse novo
repertório: “dentro de mim estive sempre ausente / fora de mim também não me
encontrei” (p. 16). Também traz latim, que o homem é versado em
idiomas e na melhor tradição literária. Como em “Quia pulvis es”,
extraído da locução religiosa “Memento homo, quia pulvis es et in pulverem
reverteris”, ou “Lembra-te, homem, que és pó e ao pó tornarás”. Como um
sacerdote, um conselheiro, esmiúça a velha locução em vinte versos curtos:
“tira os teus anéis / despe tuas roupas / queima as insígnias” (...) “despe-te
de tudo / porque a Terra chama / e o útero profundo / vai te devorar” (p. 18).
Além de exímio cultor do soneto (seja na forma camoniana ou
petrarquiana, seja na versão inglesa), Dimas Carvalho maneja outras modalidades
poemáticas: elegia, sonata, canção, cântico, rondó, etc.
Porém, nem só de latim e tradição se faz a poesia de Dimas. Com dicção
própria (mesmo que vejamos influências – e isto é muito natural em todo
inventor – deste ou daquele lavrador de versos, de um ou de outro período
histórico), o jogral cearense não se descuida dos mais modernos e seus
contemporâneos. Basta ver as epígrafes de que se valeu: Ezra Pound, Salvatore
Quasimodo, Giuseppe Ungaretti, Mário Quintana, Francisco Carvalho, Carlos
Augusto Viana e Paulo Leminski. E a série de homenagens a alguns dos mais
engenhosos polidores de safiras: Fernando Pessoa e Camões (“Uma tarde no
Chiado”), Jorge de Lima, Rilke, Vinícius e Augusto dos Anjos.
Conclusão
E mais não direi, para não tirar ao leitor o prazer de ler e reler estes
três bons ficcionistas brasileiros e com eles viver no interior de espelhos,
povoados de amor e erotismo, numa vagem (seria uma redoma?) de vidro, ao mesmo
tempo longe do hoje e perto do ontem, que é o sempre. Pois a poesia de Astrid
Cabral, Dimas Carvalho e Salomão Sousa é bela e será duradoura.
Fortaleza, 2 a 5 de março de 2013.
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