Desde o início dos tempos (os meus), tenho
conhecido ou visitado o Rio Grande do Norte, por intermédio de cearenses. O primeiro
(ainda nos anos 1970) se chama Francisco Sobreira Bezerra, contista e
romancista que para Natal se mudou muito cedo. Agora é a vez do atuante editor,
versista, contista e cronista Clauder Arcanjo, morador de Mossoró e do
alto-mar. Em fevereiro deste ano, ganhei quatro seletas de versos e prosas,
todas editadas em terras potiguares: Gênese
(Mossoró, RN: Sarau das Letras, 2012), de Leonam Cunha; Rastros nas areias brancas (Mossoró, RN: Sarau das Letras/Fundação
Vingt-un Rosado, 2012), de José Nicodemos; Cotidianas
(Mossoró, RN: Sarau das Letras, 2012) e Canções
de abril (Natal, RN: Uma, 2010), de Rizolete Fernandes. Sem tempo para
comentários longos, dedicarei duas ou três frases a cada uma.
Não constava de minha biblioteca o nome de
Leonam. Como sempre cabe mais um na estante do leitor voraz, aproximei Euclides
da Cunha de Fausto Cunha e ali enfiei o novato. Antes disso, li as 112 páginas
de Gênese. E nelas encontrei um cultor
de versos maduro. Como pode ser assim, se Leonam só conta 18 anos de idade?
Pois é verdade: há ficcionistas ou criadores nascidos para o amadurecimento
precoce. E nem preciso citar nomes. O leitor sabe a quem me refiro.
Vejamos os assuntos tratados pelo vate. Vai do
quotidiano das pessoas de nossa terra (o Nordeste, o Brasil) a problemas
sociais. Aqui cuida da falta de chuva: “O ventilador gira incessantemente / É
julho, / É tarde, / É quente, / É quente // Caem-nos míseras gotas de chuva”
(p. 13). Ali o tema do extermínio dos índios, da falta de liberdade, da miséria
(“criança co’a cara metida na lixeira”, p. 13).
Leonam sabe lidar com o som das palavras e a
disposição delas na folha. Vai da rima rica à rima rara. E apresenta sonetos,
embora não adote uma só medida nos versos. Sabe fazer a divisão em estrofes,
como em “O ermitão”, constituído de oitavas. Demonstra conhecimento de
literatura, assim como de outras artes e ciências, sem pedantismo. Há um “Poema
em anadiplose”, quase uma brincadeira. Há uma homenagem (ou uma lembrança de) a
Kafka, em “Die Verwandlung”: “Olho-me
no espelho; / Um sobressalto me espanca: / Esse sou eu, sou eu? / Teria eu me
metamorfoseado?”
Não é trovador desleixado com o idioma, sem ser
apegado demais às normas. Constrói as odes como quem canta ou elabora canção:
“Minha bisavó deitada, / Mãos cruzadas / Sobre a elevação adbominal; / Disseram
ter sido câncer” (p. 39). Não grita;
sussurra: “Lá vai meu coração, / Descendo ladeira abaixo. / Não quer saber de
problema, / Larga-me com meu embaraço” (p. 87).
Para a sua pouca idade, caminhou bem, sem muitos
e machucadores tropeços. Se continuar nesse ritmo, poderá ir longe e por vias
largas e de trânsito tranquilo.
José Nicodemos
De feição mais simples do que o vistoso impresso
de Leonam Cunha é o volume Rastros nas
areias brancas, de José Nicodemos. (Não há nenhuma referência biográfica ao
autor). Suponho tratar-se de cronista potiguar. Engano-me: no prefácio,
assinado por Leontino Filho (também cearense), encontrei isto: contista, poeta
e cronista, José Nicodemos de Souza nasceu em Areia Branca, RN, em 1938.
O menestrel e ensaísta Leontino faz um amplo bosquejo
do conjunto (contos e crônicas) de Nicodemos. Ao se referir a Rastros nas areias brancas, assinala:
“A obra divide-se em duas partes. A primeira – A cidade: labirinto de nomes, apetite da memória – composta de 65
flagrantes, traz a marca expressa pelo trinômio tempo-cidade-memória, mirando,
proustianamente, a lente da saudade nas evocações de Areia Branca, berço natal
do autor. Outros 35 escritos compõem A
palavra: círculo das coisas, encanto do ser, segunda estação aberta para a
leveza da poesia tingida de azul e os enigmas da arte do bem escrever – o
abracadabra do cronista em sua completude”.
Os relatos de José Nicodemos seguem o “modelo”
da crônica brasileira, aquele nascido com Machado de Assis e legado a inúmeros
jornalistas, escritores e viciados em escrever: João do Rio, Humberto de Campos,
Rachel de Queiroz, Carlos Drummond de Andrade, Fernando Sabino, Marques Rebelo,
Otto Lara Resende, Paulo Mendes Campos, Rubem Braga e outras centenas de nomes.
Ou seja, composição curta, voltada quase sempre para o cotidiano das pessoas da
urbe, problemas sociais, momentos cruciais da vida política, desastres,
hecatombes, crimes bárbaros e também o lado memorialístico do autor. Assim se
vê nesta reunião de peças intitulada Rastros
nas areias brancas: “Sempre que vou à minha terra” (p. 25); “Quase todo dia
me encontro com pessoas da minha terra” (p. 33); “Pois o antigo beco do padre era
só fundos de quintais” (p. 49). E assim é todo o livro: uma delícia de
recordações, em pronúncia fluente (de jornalista, de cronista, de quem conhece
as veredas vocabulares – suas mucosas, suas protuberâncias, suas reentrâncias –
e nos lambe e adoça a língua nas fontes mais puras.
Rizolete Fernandes
Iniciou-se Rizolete Fernandes no mundo das
letras impressas em 2004, com A história
oficial omite, eu conto: mulheres em luta no RN. Seguiram-se Luas nuas, dois anos depois. Canções de abril são de 2010; Cotidianas, de 2012. Naquele, a poetisa
se manifesta com intensidade, sempre de olho (ou imersa) em a natureza: o luar
de abril, as nuvens, os passarinhos, a tarde, o arco-íris, as frutas, as águas,
os rios, etc. E os seres (humanos ou não) menos livres que os pássaros:
cachorros (“um cão se aproxima / não ladra não agita a cauda”), mulheres e
homens em atividade (“mulheres tecem o tempo / no ir e vir outras não”), o pai
e a mãe (“por trás do aro dos óculos / meu pai transmite lições / no seu olhar
português // Ao seu lado minha mãe / prende nos lábios de princesa africana / o
sorriso que cedo se desfez”), os jangadeiros, os foliões do carnaval, etc. Tudo
em linguagem elementar, porém com muito cuidado, e até com esmero, que os
signos poéticos não se sentem bem se deles se aproximam vocábulos e ditos
inadequados ao encantamento.
No outro compêndio – Cotidianas –, Rizolete Fernandes envereda pelo terreno da crônica:
lembranças misturadas a observações do dia a dia. O estilo é mais despojado do
que o de José Nicodemos. As frases são mais espichadas. Além disso,
diferentemente da expressão dos poemas de Canções
de abril, a escritora se dá mais liberdade para prosear (como nos diários).
Dá-se até o direito de usar adjetivos à vontade. E expressões de uso comum. Só
importa, porém, a captação do movimento dos seres. Crônica é pintura do deslocamento
dos seres e das coisas. A poesia é quadro, retrato, desenho; a prosa de ficção
(seja conto, seja crônica, seja isto, seja aquilo) seria o quadro em movimento,
o retrato a se mexer, o desenho animado das crianças. Desculpem a brincadeira
com os gêneros literários.
Conclusão
Ou seja, não tivesse contado com a amizade de
Francisco Sobreira Bezerra, não teria sequer conhecido Câmara Cascudo. E meus
dias teriam sido mais pobres. Não fosse Clauder Arcanjo, não teria me
aproximado de Leonam Cunha, José Nicodemos e Rizolete Fernandes. E minhas
manhãs e tardes teriam decorrido sem brisas, afogueadas e, talvez,
melancólicas. Como aquelas manhãs e tardes por mim vividas, quando a solidão me
abraça e quer me arrastar para o quarto escuro de meus ancestrais.
Fortaleza, 10 de março de 2013.
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