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segunda-feira, 18 de março de 2013

Manhãs e tardes potiguares (Nilto Maciel)





Desde o início dos tempos (os meus), tenho conhecido ou visitado o Rio Grande do Norte, por intermédio de cearenses. O primeiro (ainda nos anos 1970) se chama Francisco Sobreira Bezerra, contista e romancista que para Natal se mudou muito cedo. Agora é a vez do atuante editor, versista, contista e cronista Clauder Arcanjo, morador de Mossoró e do alto-mar. Em fevereiro deste ano, ganhei quatro seletas de versos e prosas, todas editadas em terras potiguares: Gênese (Mossoró, RN: Sarau das Letras, 2012), de Leonam Cunha; Rastros nas areias brancas (Mossoró, RN: Sarau das Letras/Fundação Vingt-un Rosado, 2012), de José Nicodemos; Cotidianas (Mossoró, RN: Sarau das Letras, 2012) e Canções de abril (Natal, RN: Uma, 2010), de Rizolete Fernandes. Sem tempo para comentários longos, dedicarei duas ou três frases a cada uma.

Leonam Cunha

Não constava de minha biblioteca o nome de Leonam. Como sempre cabe mais um na estante do leitor voraz, aproximei Euclides da Cunha de Fausto Cunha e ali enfiei o novato. Antes disso, li as 112 páginas de Gênese. E nelas encontrei um cultor de versos maduro. Como pode ser assim, se Leonam só conta 18 anos de idade? Pois é verdade: há ficcionistas ou criadores nascidos para o amadurecimento precoce. E nem preciso citar nomes. O leitor sabe a quem me refiro.
Vejamos os assuntos tratados pelo vate. Vai do quotidiano das pessoas de nossa terra (o Nordeste, o Brasil) a problemas sociais. Aqui cuida da falta de chuva: “O ventilador gira incessantemente / É julho, / É tarde, / É quente, / É quente // Caem-nos míseras gotas de chuva” (p. 13). Ali o tema do extermínio dos índios, da falta de liberdade, da miséria (“criança co’a cara metida na lixeira”, p. 13).
Leonam sabe lidar com o som das palavras e a disposição delas na folha. Vai da rima rica à rima rara. E apresenta sonetos, embora não adote uma só medida nos versos. Sabe fazer a divisão em estrofes, como em “O ermitão”, constituído de oitavas. Demonstra conhecimento de literatura, assim como de outras artes e ciências, sem pedantismo. Há um “Poema em anadiplose”, quase uma brincadeira. Há uma homenagem (ou uma lembrança de) a Kafka, em “Die Verwandlung”: “Olho-me no espelho; / Um sobressalto me espanca: / Esse sou eu, sou eu? / Teria eu me metamorfoseado?”
Não é trovador desleixado com o idioma, sem ser apegado demais às normas. Constrói as odes como quem canta ou elabora canção: “Minha bisavó deitada, / Mãos cruzadas / Sobre a elevação adbominal; / Disseram ter sido câncer” (p. 39).  Não grita; sussurra: “Lá vai meu coração, / Descendo ladeira abaixo. / Não quer saber de problema, / Larga-me com meu embaraço” (p. 87).
Para a sua pouca idade, caminhou bem, sem muitos e machucadores tropeços. Se continuar nesse ritmo, poderá ir longe e por vias largas e de trânsito tranquilo.
           

José Nicodemos

De feição mais simples do que o vistoso impresso de Leonam Cunha é o volume Rastros nas areias brancas, de José Nicodemos. (Não há nenhuma referência biográfica ao autor). Suponho tratar-se de cronista potiguar. Engano-me: no prefácio, assinado por Leontino Filho (também cearense), encontrei isto: contista, poeta e cronista, José Nicodemos de Souza nasceu em Areia Branca, RN, em 1938.
O menestrel e ensaísta Leontino faz um amplo bosquejo do conjunto (contos e crônicas) de Nicodemos. Ao se referir a Rastros nas areias brancas, assinala: “A obra divide-se em duas partes. A primeira – A cidade: labirinto de nomes, apetite da memória – composta de 65 flagrantes, traz a marca expressa pelo trinômio tempo-cidade-memória, mirando, proustianamente, a lente da saudade nas evocações de Areia Branca, berço natal do autor. Outros 35 escritos compõem A palavra: círculo das coisas, encanto do ser, segunda estação aberta para a leveza da poesia tingida de azul e os enigmas da arte do bem escrever – o abracadabra do cronista em sua completude”.
Os relatos de José Nicodemos seguem o “modelo” da crônica brasileira, aquele nascido com Machado de Assis e legado a inúmeros jornalistas, escritores e viciados em escrever: João do Rio, Humberto de Campos, Rachel de Queiroz, Carlos Drummond de Andrade, Fernando Sabino, Marques Rebelo, Otto Lara Resende, Paulo Mendes Campos, Rubem Braga e outras centenas de nomes. Ou seja, composição curta, voltada quase sempre para o cotidiano das pessoas da urbe, problemas sociais, momentos cruciais da vida política, desastres, hecatombes, crimes bárbaros e também o lado memorialístico do autor. Assim se vê nesta reunião de peças intitulada Rastros nas areias brancas: “Sempre que vou à minha terra” (p. 25); “Quase todo dia me encontro com pessoas da minha terra” (p. 33); “Pois o antigo beco do padre era só fundos de quintais” (p. 49). E assim é todo o livro: uma delícia de recordações, em pronúncia fluente (de jornalista, de cronista, de quem conhece as veredas vocabulares – suas mucosas, suas protuberâncias, suas reentrâncias – e nos lambe e adoça a língua nas fontes mais puras.

Rizolete Fernandes

Iniciou-se Rizolete Fernandes no mundo das letras impressas em 2004, com A história oficial omite, eu conto: mulheres em luta no RN. Seguiram-se Luas nuas, dois anos depois. Canções de abril são de 2010; Cotidianas, de 2012. Naquele, a poetisa se manifesta com intensidade, sempre de olho (ou imersa) em a natureza: o luar de abril, as nuvens, os passarinhos, a tarde, o arco-íris, as frutas, as águas, os rios, etc. E os seres (humanos ou não) menos livres que os pássaros: cachorros (“um cão se aproxima / não ladra não agita a cauda”), mulheres e homens em atividade (“mulheres tecem o tempo / no ir e vir outras não”), o pai e a mãe (“por trás do aro dos óculos / meu pai transmite lições / no seu olhar português // Ao seu lado minha mãe / prende nos lábios de princesa africana / o sorriso que cedo se desfez”), os jangadeiros, os foliões do carnaval, etc. Tudo em linguagem elementar, porém com muito cuidado, e até com esmero, que os signos poéticos não se sentem bem se deles se aproximam vocábulos e ditos inadequados ao encantamento.
No outro compêndio – Cotidianas –, Rizolete Fernandes envereda pelo terreno da crônica: lembranças misturadas a observações do dia a dia. O estilo é mais despojado do que o de José Nicodemos. As frases são mais espichadas. Além disso, diferentemente da expressão dos poemas de Canções de abril, a escritora se dá mais liberdade para prosear (como nos diários). Dá-se até o direito de usar adjetivos à vontade. E expressões de uso comum. Só importa, porém, a captação do movimento dos seres. Crônica é pintura do deslocamento dos seres e das coisas. A poesia é quadro, retrato, desenho; a prosa de ficção (seja conto, seja crônica, seja isto, seja aquilo) seria o quadro em movimento, o retrato a se mexer, o desenho animado das crianças. Desculpem a brincadeira com os gêneros literários.

Conclusão

Ou seja, não tivesse contado com a amizade de Francisco Sobreira Bezerra, não teria sequer conhecido Câmara Cascudo. E meus dias teriam sido mais pobres. Não fosse Clauder Arcanjo, não teria me aproximado de Leonam Cunha, José Nicodemos e Rizolete Fernandes. E minhas manhãs e tardes teriam decorrido sem brisas, afogueadas e, talvez, melancólicas. Como aquelas manhãs e tardes por mim vividas, quando a solidão me abraça e quer me arrastar para o quarto escuro de meus ancestrais.

Fortaleza, 10 de março de 2013.

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