A escritora Margarida Patriota, ao escrever a biografia
romanceada do poeta Cruz e Sousa (1861-1898), fez dois mergulhos distintos: um
nas águas turvas e turbulentas de fatos históricos da segunda metade do século
XIX e outro na estrutura linguística da época, para narrar a saga de um dos
precursores do movimento simbolista no Brasil.
A lenda de João, o
assinalado (editora Topbooks, 2012) percorre a vida
do personagem desde o nascimento, em Nossa Senhora do Desterro (hoje Florianópolis),
até momentos antes de sua trágica morte aos 37 anos. Um trabalho, aliás, esplendoroso, que expõe
algumas abstrações do biografado ante a inexorável aproximação do fim. Aquilo
que, na poesia, se chama “chave de ouro”. Em nota ao fim da narrativa, somos
informados de que Cruz e Sousa morreu na cidade serrana de Sítio, Minas Gerais,
para onde se dirigiu na esperança da cura de uma tuberculose já sem
remédio. E, com ajuda financeira de Nestor Vítor e outros
amigos, seu corpo foi levado para sepultamento no
Rio de Janeiro em vagão destinado a transporte de cavalos. (Wolfgang Amadeus
Mozart teve melhor sorte, apesar de ter sido enterrado como indigente em vala comum.)
O Brasil, embora tenha proclamado a república nove anos antes
da morte do Cisne Negro, ainda estava à procura de uma identidade política e
ideológica e vivia as agruras da recente abolição da escravatura e os desastres
iniciais do golpe político-militar que destronou a monarquia. Por isso, andava
meio às cegas rumo ao desconhecido. (Hoje, passados mais de cento e vinte anos, o país continua
basicamente o mesmo em vários aspectos.) E aqui me lembra uma frase de Machado
de Assis que nos leva a compreender melhor algumas questões internas até hoje
não superadas: “O problema do Brasil não é a monarquia nem a república; é a
oligarquia absoluta.”
Para construir o personagem e a trama em torno dele, a autora
absteve-se de pormenores biográficos mais polêmicos, como a implicância dos
parnasianos chefiados por Olavo Bilac e a má vontade do autor
de Memórias póstumas de Brás Cubas
com o poeta da província. Deixa de lado também as
andanças do protagonista por algumas capitais brasileiras, como ‘ponto’ de uma
companhia de teatro, bem como a questão das intimidações sofridas por ele
durante o curto período em que esteve radicado no Rio de Janeiro. Opta por
costurar uma narrativa ficcional com acentuação de traços psicológicos e o
caráter de um homem marcado a ferro e fogo por sua condição social, num país
ainda comprometido com a herança da escravidão e outros atrasos.
Desde a primeira infância, o menino João mostrou-se um
superdotado, com nítida tendência para o mundo das ideias, das letras, das
palavras. Ser poeta, para ele, seria uma condição natural: poeta nascitur, non fit (Horácio).
Tanto que sensibilizou os patrões de sua mãe, que serviu em casa de um
marechal-de-campo, cuja esposa, uma jovem senhora de sentimentos nobres e alma
arejada, logo se prontificou a dar aulas para o menino e educá-lo como o
filho que, biologicamente, estava impedida de
trazer ao mundo.
Margarida Patriota, ao levantar a catedral simbólica da vida
do autor de Missal e Broquéis, compõe um painel humano e
artístico na medida exata. A narrativa tecida na terceira pessoa é ágil e
penetrante, conquanto espinhosa — para os menos familiarizados com a linguagem
utilizada. Durante a leitura do romance, idas ao dicionário hão de ser uma
constante, mas, uma vez superado esse pequeno contratempo, a fruição certamente
irá recompensar todo e qualquer sacrifício. A autora, exímia
construtora de diálogos, consegue a proeza da prosa
poética em seu discurso ficcional, sem titubeio. Outro pormenor deriva-se do
cuidado extremo com não cair (e não cai) no lugar-comum e levantar bandeira
contra quaisquer preconceitos de raça ou de cor. Sequer nomeia a cor da pele de
seus personagens. E os nomes, quando não reduzidos, conduzem a síncopes e
outras invenções, evitando-se, em alguns casos, o registro de cartório na vida
real.
Dividido em seis partes (“Lar”, “Vila”, “Ar”, “Tribo”,
“Farol”, “Porto”), o livro, entre os muitos achados estilísticos que contém,
traz uma página antológica: o improvável diálogo entre Charles Baudelaire e
Cruz e Sousa a partir da leitura de um livro do primeiro pelo segundo, e que
vai determinar a escolha deste pelos temas, digamos, vaporosos e místicos, levando-o a abraçar de vez a
estética simbolista, marcada pela musicalidade dos versos e pela subjetividade
dos temas. Margarida Patriota conduz essa “conversa” em clima de elevado
colóquio entre os dois poetas, explorando nuanças insuspeitadas de uma
espiritualidade transcendente, que os aproxima de uma vez por todas.
Assim, a história contada pela autora de Elas por elas vai permeando o universo físico e psicológico de uma
das figuras mais extraordinárias da literatura brasileira, o
poeta que, por pouco, não morria no ostracismo,
tamanha a obscuridade que envolveu sua vida e sua obra. A base do livro, no
entanto, se solidifica na estrutura de plano linear, sem flashbacks, mas dentro de uma cronologia devidamente respeitosa.
Didático sem ser didático, A lenda de
João, o assinalado configura-se um discurso estritamente original, cuja
linguagem erudita patenteia as intenções autorais em busca da perfeição
estilística, do depuramento sintático e verbal. E o resultado é o retrato vivo
e verossímil de um homem que protagonizou um dos períodos mais controversos da
história literária no Brasil: Cruz e Sousa, o poeta negro que, por força
de obstinação e talento, conseguiu introduzir
definitivamente o Simbolismo nas letras nacionais.
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(*) João Carlos
Taveira é poeta e crítico literário, autor de A flauta em construção, Arquitetura
do homem e A arquitetura verbal de
Nilto Maciel, entre outros livros.
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