Com exceção da obra de Teresa
Margarida da Silva e Orta (Aventuras de
Diófanes, de 1752), de temática grega, clássica, e de um ou outro romance
de capa e espada, de cunho meramente comercial, ou mesmo literário, mas, fraco,
como Uma Lágrima de Mulher (1880), de
Aluísio Azevedo, ou, ainda, Eulâmpio
Corvo (1909) e a trilogia Heloísa
d’Arlemont (1918/?), do pernambucano Zeferino Galvão (1864-1924), e início
de Mana Silvéria (1913), do gaúcho
Canto e Melo, a ficção Brasileira palmilha trilha única e comum quanto à
localização geográfica, social e econômica da temática elegida, sempre restrita
ao Brasil.
Essa, pois, uma das características
preponderantes dessa ficção. Por isso, o romance A Quadragésima Porta (1943), de José
Geraldo Vieira (Rio de Janeiro/RJ, 1897 - São Paulo/SP, 1977), surpreende pelo
seu cosmopolitismo, não reconhecido pelo Autor, que prefere, em nota
introdutória, considerá-lo “tentativa não
de romance cosmopolita, mas de encruzilhada ecumênica”, o que, no caso, vem
a dar na mesma. A surpresa, aqui, só é
possível se decorrente da leitura planejada e cronológica, proporcionadora do
impacto decorrente de imediatas observação e comparação.
E é justificável, porque esse
livro inaugura, no Brasil, o romance cosmopolita de temática ecumênica.
Conforme salienta Sérgio Milliet, em citação descontextualizada inserta na
última capa da terceira edição (provavelmente de 1968, como se registra no
colofão, já que a editora Martins omite a data na folha de rosto), “com este romance iniciamos uma nova etapa.
Rompemos o nosso isolacionismo e entramos na agitação do mundo”,
completando, hiperbolicamente, que “saímos
da aldeia para a metrópole”, o que, esteticamente, é indiferente, bastando
lembrar que Eça de Queirós, em A Cidade e
as Serras (1901), percorre caminho inverso com melhor resultado.
Assim, o contato com essa
obra é, pois, nessa perspectiva, impactante. Nesse caso, não em todos, reação
obnubiladora da mente e perniciosa como base de raciocínio, análise e
avaliação.
A inserção das personagens
nas encruzilhadas geográficas do mundo e sua participação nos acontecimentos
cruciais da História levam, no caso, a obscurecer e mesmo camuflar as
limitações, carências e artificialismo da obra. Diante de seu feerismo,
característica notada por Ledo Ivo, também citado na última capa da 3ª ed.,
impressionados e dominados por ele, pode-se (e muitos o fizeram), superestimar
o romance, a ponto de incluí-lo, frequentemente, entre os “dez melhores romances brasileiros”, conforme noticia a “orelha” da
referida terceira edição. Ou de se dizer, como o fez Wilson Martins, citado
aspeadamente na mencionada “orelha”, ser, esse, “um dos romances basilares da literatura brasileira, merecedor dum lugar
entre as grandes obras de todas as literaturas”.
Todavia, A Quadragésima Porta, limado ou escoimado dessa tênue casca
feérica, constitui romance frustrado, frustrante e irrealizado. Não são seus
traços distintivos mais evidentes, como a colocação das personagens no olho do
furacão da História (no caso, não por mera coincidência, mas, propositadamente,
Primeira Grande Guerra, Revolução Soviética de 1917, primeiros anos da Segunda
Guerra Mundial), que lhe poderão dar, a ele ou a qualquer outro romance, os
predicados que não possui e que, para configurar obra de arte, obrigatoriamente
deveria ter: estrutura romanesca e profundidade analítica. Ou seja, qualidade
estética e verdade humana.
Nem um nem outro desses
atributos permeiam o romance, que, desnudado das lantejoulas e enfeites
pretensamente históricos, não passa de obra menor, episódica. E que, pelo seu
patente artificialismo, nem ao menos alcança a feição documental,
ficcionalmente ancilar.
Assim, despido das roupagens
falsamente brilhantes e enfocado no que efetivamente importa, em se tratando de
obra literária de ficção (linguagem, estrutura romanesca, consistência das
personagens, autenticidade e profundidade humanas), e comparado com as
obras-primas do romance brasileiro, percebe-se, facilmente, sua insuficiência.
A linguagem e a estrutura
constituem elementos congênitos e intrínsecos ao gênero. A realidade do ser
humano é requisito essencial e elemento condicionante, cuja falta, ou
precariedade, o desfigura e o descaracteriza. Ao ficcionista cumpre e compete
detectar ou descobrir essa verdade substancial e criá-la artisticamente.
José Geraldo Vieira, autor,
ainda, entre outros, dos romances A
Mulher Que Fugiu de Sodoma (1931), Território
Humano (1936), A Túnica e os Dados (1947),
A Ladeira da Memória (1950) e Terreno Baldio (1961), não logra, em A Quadragésima Porta, alcançar qualquer
das citadas qualidades, pelo que esse romance não se consuma como obra de arte,
erigindo-se, no vácuo daí resultante, um monólito, como afirma, pretendendo
elogiá-lo, o crítico Tulo Hostílio Montenegro, opinião também transcrita na
última capa da terceira edição. Realmente um monólito e, como ele, uniforme e
tedioso, mesmo que construído mediante linguagem desenvolta, de cunho, todavia,
artificioso, como também artificiais são a estória e as personagens.
Em suma, A Quadragésima Porta é romance enganador como toda obra que flutua
na periferia da realidade sem captar sua substância, mas aparentando fazê-lo.
Guido
Bilharinho é advogado atuante em Uberaba e editor da revista internacional de
poesia Dimensão de 1980 a 2000, sendo ainda
autor de livros de literatura, cinema e história regional e nacional.
(Publicação autorizada pelo
autor)
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