Não me sobra tempo para
dedicar uma crônica a cada livro recebido. Por isso, seleciono, de vez em
quando, três ou mais (quase sempre, do mesmo gênero) e os comento
conjuntamente. Hoje será assim também.
Os leitores mais amigos
chasquearão: o danado dispõe de tempo até demais, pois aposentado é, passa os
dias a ouvir música, assistir a filmes e bater pernas pelo shopping. Têm certa
razão: faço tudo isso e ainda leio muito e rabisco letrinhas, nas horas vagas.
E aí está a razão principal por que me falta tempo para outras atividades: consagro-me,
sofregamente, a mim mesmo, sobretudo a desenhar frases. Chego a perder a noção
do tempo, nas horas de prazer físico e mental proporcionado pelo ato (sexual)
de escrever.
Dadas as devidas
explicações públicas, deixo-me de lengalenga e passo aos três compêndios recebidos
semana passada: Círculos – breve
antologia (Brasília: Thesaurus, 2012)), de Antonio Miranda (poemas
selecionados para apresentações durante o VI Festival Las Lenguas de América:
Carlos Montemayor, Ciudad de Mexico, 2012), edição bilíngue: português/espanhol;
Junto à lareira invisível (Fortaleza:
Expressão Gráfica, 2013), de Linhares Filho; e Lições de tempo/Lecciones de tiempo & Os movimentos de Cronos/Los
movimientos de Cronos (Rio de Janeiro: Ibis Libris, 2012), de Roberto Pontes,
edição bilíngue: português/espanhol.
Aspecto notório em Antonio
Miranda (maranhense de nascimento, brasiliense por diversas circunstâncias) é o
da diversidade de temas abordados, obra após obra. E isto está bem percebido
pelo crítico Eduardo García: “Cada uno de sus libros es una nueva aventura
(...) Sus textos tienden a aglutinarse, dialogando entre si, hasta formar parte
de una unidad orgânica más amplia”. Neste ora manuseado, o assunto principal
talvez seja a própria literatura: metalinguagem, metapoesia. Veja-se isto: “Que
seja com um machado. // Prefiro uma lâmina aguda / um simples martelo / num
golpe de misericórdia. // Com palavras, não. /Elas ferem muito mais / penetram
mais ainda / mais fundo” (...). Mais explícito ainda é “Metapoema”: “Tudo, tudo
mesmo / já se disse em poesia / mas vale dizer de novo”.
A artesania de Roberto
Pontes, que conheço desde a primeira coletânea (comentei Lições de espaço ainda nos anos 1970), tem a condensação da
partícula originária do Universo, a chamada “partícula de Deus”. Porém,
refiro-me apenas à forma, à construção do verso, aos elementos componentes da peça
e ao léxico. Vejamos este primeiro trecho: “Foi uma invenção do sortilégio /
exercido sobre os sais da natureza / e onde havia o pó / vingou a chama, / uma
gota sumarenta / de energia. / Era o próprio tempo a gerar-se. / Assim se abre
um botão de rododendro”. Não, não se trata apenas de forma. O menestrel
cearense refere-se ao tempo, ao início do tempo, ao gênese ou aos gêneses.
Ao lado de outros guardadores
de rebanhos, Linhares Filho, embora católico praticante, também se ocupa do
mundo, do profano, do amor, do tempo, de sua (?) cidade (“Ode a Fortaleza”), da
sua terra (o sertão, a pequena Lavras), de outros vates (“À grandeza de Castro
Alves”). São inúmeras as cantigas de preito a trovadores de sua geração e mais
novos. Alimenta-se também dos grandes dramas do mundo. Isto se vê em “À menina
Malala, vítima do Talibã”. A miséria humana também faz parte de suas andanças
pelo território do verso. Em “Meditação solidária” vai do assassinato de
mendigos à morte por inanição e outras tragédias. Os mais críticos lembrarão,
porém, a carnificina praticada sob a bênção papal ou dos cardeais e dos padres
em geral. Muitas vezes, a mando deles (sem querer lembrar a Santa Inquisição,
os bombardeios por tropas nazistas e fascistas a populações inteiras, Pio XII a
beijar a suástica sob o manto cardinalício); outras vezes, por omissão (a
prática rotineira de tortura e assassinato de presos políticos no Brasil e
outros países dominados por ditaduras de extrema direita). Isso, no entanto,
não é pecado grave, nem crime, pois são conhecidos os comportamentos
reprováveis de grandes nomes das letras: Gustavo Corção e Gustavo Barroso, no Brasil;
Ferdinand Celine e Ezra Pound, na Europa, para citarmos apenas quatro nomes.
Antonio Miranda não se
perde em devaneios com as palavras. Entretanto, também sabe contar, sem se
perder nos meandros da narração prosaica. Faz uso do léxico com a necessária
economia, sem esbanjamentos: “Antes de nascer, ouvia e gravava, / sem entender:
gritos, buzinas, canções. / Sem consciência do mundo, eu gravava”. Faz exame de
consciência, autocrítica: “Memória física, em códigos que / eu não domino, que
me domina. / Como Champolion, tento entender-me”.
Em Linhares Filho
verifica-se essa mesma preocupação com o léxico, com o uso de rico vocabulário,
sem ser extravagante nem extraído das estrelas. Tudo simples: “Quem transforma
água em vinho, / peixes e pães multiplica, / quem os mortos ressuscita / e as
ondas do mar domina, / tem sobre o corpo poder / de algo nele converter, /
dar-se como Pão da Vida”. Ou tudo segundo a Bíblia, a tradição, a Igreja
Romana. Aliás, é esse o ponto fraco do pintor de versos nascido em Lavras da
Mangabeira: sua entrega poética aos ritos, aos mitos, aos detritos religiosos.
Já o hinário de Roberto
Pontes nada tem de lirismo. Só porque não fala de amor, de sentimentos? Ele
fala de origens (e tudo, inclusive o amor veio muito depois de tudo), do espaço
mais amplo do Universo e do espaço mais restrito dos indivíduos: “As paredes do colo são de terra / Para o besouro / Que zumbe seu cansaço. / É o homem / Sugando
o barro tátil / E sendo o fio no útero em festa”. Pode não parecer poético
(também a arquitetura de João Cabral é chamada de seca, áspera e sem beleza).
O
bordado verbal de Antonio Miranda é multifacetado: vai do leque amplo de
assuntos ao uso das mais variadas formas. Passeia tranquilamente pelo verso
livre, modernista, e pelas formas mais antigas (é exemplar o soneto “Bestiário
3”) ou peças constituídas de quadras (“Barco à deriva”; “Sombras somadas”) e
tercetos (“Antes de nascer, eu ouvia”; “Encurralado”). E, se assim conseguiu
navegar pelos sete mares da fantasia, fê-lo por também conhecer os setenta mil
arcanjos da lira. Veja-se a joia para Maiakóvski: “Vou ao meu funeral
cantando”. Compôs também uma sequência de árias para Konstantinos Kaváfis, com
a reprodução de um deles no volume ora visto.
O
cearense Linhares Filho também é hábil sonetista (vê-se isto à mancheia neste opúsculo),
desde “No campo dos pastores” até “Amor: uma constante busca”. E não são
sonetos de afogadilho, mal-amanhados, tortos, desses estampados em impressos
cheios de graça. E são tantas as formas usadas (italiano, inglês, monostrófico,
etc) que o leitor fica a comparar um a outro, na esperança de encontrar mais
novidades. E encontra decassílabos perfeitos (“Altaneiro condor, gênio da raça,
/ teu voo arrebatou-me a juventude, / e a vibração do teu poetar me enlaça /
ainda, conforme os versos teus estude”), alexandrinos, octossílabos, etc. Nada,
porém de extravagâncias, libertinagens adolescentes, barbaridades, só para se mostrar
rebelde.
A dicção de Roberto
Pontes seria aquela proposta por Bandeira em “Estou farto do lirismo comedido”?
Talvez o bardo recifense não se referisse a esse aspecto (a linguagem em si) do
poema. Pois Roberto Pontes quis se manter bem distante dos temas propostos por
clássicos, românticos, parnasianos, modernistas (o ser, o homem) e se (i)limitar
ao espaço e ao tempo como categorias filosóficas. O resultado disso é uma alquimia
densa, constituída de semantemas primordiais, vocábulos universais, de uma
poesia-arte e, ao mesmo tempo, ciência da língua: pó, energia, tempo, vida,
útero, célula, etc.
Por falta de oportunidade
(ou será de capacidade?), não alongarei mais essa cantilena, apesar de a invenção
dos três versistas merecer longo tempo de leitura e análise. Quem sou eu,
porém, para compreender as lições de espaço e tempo de Roberto Pontes, o
lirismo de Linhares Filho e a metalinguagem de Antonio Miranda? A base da
planta é a mesma, porém cada azaleia tem o seu feitio; cada flor, a sua beleza;
cada pétala, o seu perfume: rododendro. É o sortilégio da vida e da arte.
Fortaleza, 20 de maio de
2013.
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