Regina Lyra busca, em seu novo
livro de poemas Vão da Palavra, o
espaço oco, o vácuo dos significados
entre as palavras: o intervalo entre o silêncio e o barulho; entre o mínimo e o
máximo; entre o supérfluo e o essencial; entre o grandioso e o simples. Sua
poesia transita nesse vazio, nessas reticências, nesse ar sufocante entre o que
inexiste e o que existe; entre o ilusório e o real. Entremeios e Entre Nós (título
de um de seus livros). A poeta nos ensina a ser no meio desses vãos entrelaçados, diante de seus nós. Mostra-nos que a palavra resiste e nos consola, emergindo
em seu fantasioso e fantástico mundo de imagens, mistérios, signos e enigmas.
Assim, entre reticências e entrelinhas, no osso debaixo da pele, na raiz que
existe antes da semente e da planta, na fala que vem antes da voz, Regina Lyra
nos ensina que somente a poesia (o poema) pode nos salvar desse enganador mundo
em que vivemos:
Vejo nas dobras das entrelinhas,
Para que caibam reticências,
No dobro do ato
Falho.
(Reticências)
Ou,
no belo poema: Na plataforma vazia, /
Entrelinhas fogem. (O trem se afasta).
Ainda:
Nas entrelinhas da vida / Espinhos são
encontrados / O mistério é transformá-los / Em rosas. (Fraternidade). Estes, entre
tantos títulos.
Afinal,
para Regina Lyra, a vida é um vão
entre o passado e o futuro. O presente é um vão,
como observa a poeta no ótimo poema O
barco: Assim como a vida, /
Precisa-se voltar a antigas páginas, / Ou virá-las definitivamente.
Há
de se viver o agora. Viver o que a vida nos oferece. Sem atropelar os desejos.
Sem sofrer pelo que aparenta não ser possível. Viver o que está nas mãos,
diante dos olhos, sem alienação ou passividade. Com sabedoria na hora da
decisão, pois entende que a vida é fugaz. Vejamos o exemplo desse instigante
poema:
Encruzilhadas
Levam para bifurcadas estradas.
(...)
Nessas eternas escolhas,
Fazer o quê?
Viver intensamente
O presente doado.
(Escolhas)
Porque,
para ela, a vida é uma circunstância: Tudo,
circunstancial: como a vida. (Transgressora
da palavra).
Logo
no primeiro poema do livro, a autora nos direciona ao seu modo de pensar e
fazer poesia: Entre o vão da palavra, /
Versos criados com calma. (A criação).
Assim,
com inteligência e sátira, Regina
Lyra nos diz do seu jeito de permanecer
sem jeito; e nos dá a receita do cozimento das palavras: o tempero, o sal,
o mel, o melhor paladar. E, no tempo certo da fervura, nos oferece o gosto do
prazer:
Quando escrevo um poema,
Sinto o sabor das palavras,
Degusto as imagens,
Faço amor com os versos.
(...)
Quando escrevo um poema,
Sei que é uma aprendizagem.
(Transgressora da palavra)
Regina
Lyra constrói climas descritivos, em versos afetivos, como se quisesse criar
uma atmosfera poética onde pudesse deixar suas impressões sobre a vida e o
mundo. Nesse contexto, poderíamos separar sua obra em temas recorrentes,
dividindo-os em quatro grandes vertentes: 1) O sensual/sexual, ou seja, a
vertente do desejo e do amor (lírico e erótico). 2) O Tempo, com seu sentido de
eternidade. 3) O fazer poético. 4) A perda e a partida, incessantes sensações
que dominam todo o livro.
Apesar
da diversidade temática, Vão da Palavra
tem unidade; essa qualidade tão importante, distanciada de tantos poetas.
Inúmeros poemas nos remetem a esses motivos:
Nesse espaço da existência,
O tempo carece da razão.
(...)
Encontra-se abrigo,
No imaginário perdido.
(Regaço)
Ainda:
Eterno como o tempo / Terno como a voz
sussurrante. (Intenso eterno). Cerrados os olhos / Encontra o sonho
partido, / Pássaro querido. / (Por
que, afinal?). Busco meus eus
perdidos / Nos oásis do deserto. (Transgressora
da palavra). A partida do imenso, / A
falta do grande. (...) / A melancolia de mais uma partida, / A
alegria de mais uma chegada. / Nesta ausência, a presença: / Constância do
tempo. (Brevemente). A voz estaria calada, / Por longos instantes
perdidos. / (Anjo), entre tantos
exemplos.
Para
Regina Lyra, o amor é uma prisão, onde os amantes encontram-se, geralmente, algemados. Vejamos o belo poema Algemas, onde se ratifica a sensação de perda:
As lembranças,
Imagens acalentadas,
Presenças perdidas.
O amor instalado
Foi divertido:
Algemas lado a lado.
Nada seria preciso.
Nem mesmo confissão
Da perda, da ausência.
Tristeza por não ter permanecido,
Quando, na verdade,
Apenas sexo era querido.
(...)
Dia seguinte,
Instalado o logro.
Mas,
apesar de quase sempre, logro, para a
poeta: o amor é tudo. Já que o mundo
é carregado por ele:
Neste desvelo,
As ancas fazem tudo,
Vê-se o mundo
Suportado
Pelo amor.
(Alcova)
Mesmo
aspirando à eternidade do amor, conhece a dor do tempo e a fragilidade de se
estar vivo: Ser feliz é ter ao lado o /
Amor / eterno (Ser feliz).
Ou:
Ah, amor!/ Como é bom ter esperança / Do
encontro real, / Total. (Amor querido).
E
é falando sobre o amor erótico, que Regina Lyra obtém, talvez, o melhor momento
do livro, num poema digno de ser incluído em qualquer antologia do gênero:
Enquanto você brinca, eu abro
orquídeas.
Levo meu cheiro de fêmea no cio.
Abro as pétalas e as coxas,
Em movimento contínuo.
(...)
Enquanto você brinca,
Eu abro orquídeas
Para
Você.
(Brincando de fazer amor)
A
eternidade (o sentido de permanência e a intensidade emotiva das coisas e do
Tempo) encontra-se em muitos poemas do livro, sendo, também, tema caro à
autora:
Na intensidade do tempo
Passou-se o momento sem preço.
Antes que se tornasse avesso,
Travestiu-se de eternidade.
(...)
No instante intenso,
A história é contada.
(Intenso eterno)
Ou:
Situação perpetuada / Pela intensidade do
ontem. (Dilacerada). Intenso
pensamento / Permeia a navegação do tempo. (Pensamento). E, assim, outros poemas.
Com
o grande mérito de nunca ser prolixa, Regina Lyra constrói uma poesia etérea,
difícil de ser catalogada ou classificada. Simples e, ao mesmo tempo, profunda.
Em sua quase totalidade, são poemas pequenos, construídos em versos curtos;
trabalhados em elipses, silepses, cortes e nós.
Como se pensamentos soltos, embaralhados, causando certa estranheza em seu
total entendimento; unidos, tantas vezes, pelo silêncio; que, ao leitor, cabe
preencher.
Esse
clima cria um estilo próprio, único.
Como se a poeta, de forma proposital, desejasse causar certo desconforto na
leitura; com versos que, muitas vezes, parecem cifrados, fora de contexto,
desconectados uns dos outros; principalmente, nos términos de alguns poemas. O
que a autora deseja com essas construções é dessacralizar o que possa haver de
peso ou drama nos versos que antecedem os seus finais. Regina Lyra foge do
final-padrão, com versos em crescendo, ou
com versos que coroem o encadeamento lógico do poema. E essa característica é
uma singularidade de sua poesia. Ela é avessa ao barulho, ao poema-ópera. Seus
poemas se interrompem como se interrompe uma conversa com amigos, quando uma
fala se coloca e se interpenetra na outra. No vão da palavra. Sem perguntas, porque há sempre uma lacuna entre o
que se diz e o que realmente se quer dizer —
aqui lembrando o Fingidor, de Pessoa. Regina Lyra brinca de esconde-esconde com
o leitor, conversa com ele, não o assusta. Quer tocá-lo com as palavras mais
simples, não com o grito. Prefere o jeito sincero e sensível. E consegue:
A noite foi carregada de
lembranças,
Crenças.
Nada de preocupações vãs.
A amizade é eterna
Confiança misteriosa.
(Noite inesquecível)
Ou:
Belo encanto / Pelos caminhos do poema, /
Do qual guardo o tema. / (...) / Triste
momento / Da foice escapa, / Mas não abafa o salto. (Caminhos poéticos). Apenas
para citar alguns.
Não
há nada de falso intelectualismo e pseudoerudição nessa sua forma de versejar.
A poeta não se permite. Nada de academicismos ou afetação. Sua poesia é
extremamente moderna sem, entretanto, retirar uma vírgula sequer de suas raízes
clássicas. Isso a torna atraente, inteligente e deliciosamente lírica. Sem
preciosismos formais, seus recursos estéticos e técnicos eliminam gorduras,
buscam a concisão. Não há derramamentos de angústias, dores de amores ou de
infância; enfim, qualquer tipo de dores em clichês. Ela não pretende ser
visceral, tediosamente sofrida. Ela nos fala sem estridências. Prefere ser
plácida, pausada, buscando a palavra precisa e justa; serena em suas aflições.
Menos tango e mais soul. Uma dicção que não soa áspera, agressiva;
antes, seus versos — mesmo quando
contundentes — soam aveludados,
delicados, musicais. Num ritmo cool, jazz.
Em
sua poesia — extremamente
feminina — o fazer poético
consegue equilibrar, somar lirismo e vida; quase sempre, com grande felicidade.
Obtém, portanto, uma poesia profundamente
humana. E o faz com categoria, emoção e razão.
Assim,
Regina Lyra não foge de suas tradições, de suas raízes literárias e poéticas
(suas várias leituras e vozes). E imprime em seu trabalho um encantamento
ilusório, um estranhamento ao que já foi dito e lido. Nota-se um afastamento
crítico de certa literatura oficial. Há um aprofundamento dos versos; quase
sussurros... Coloquiais, feitos de silêncios. Aspecto que confere à sua poesia
uma vitalidade expressiva, que a torna singular na literatura brasileira. Ela
alcança o que poucos alcançam: uma poesia reflexiva e coerente. Uma poesia
comovente!
Outra
característica que podemos encontrar nos poemas da autora é que muitos deles contam —
mais do que sentem —
sobre as emoções.
Como se a poeta não estivesse dentro deles, não falasse de si mesma, se
abrigasse numa outra persona. Inverte ou oculta o eu-lírico, o poeta-autor
(a voz do poema). Prefere a distância, a ausência medida. Vê tudo com o olhar
entusiasmado de um observador, de um fotógrafo, de um cineasta. Godard. Nouvelle vague. Ao mesmo tempo, na cena
e fora dela.
Com
os versos transformados em vãos entre
a linguagem e a ideia do poema, Regina Lyra radicaliza a sua estrutura. Mistura
as vozes poéticas (eu-lírico/poeta-autor) ou quebra, abruptamente, o andamento
(cadência, ritmo) do poema. Os versos fluem harmonicamente, mas por vezes são
quebrados por dissonâncias, com ritmos diferenciados. São sonhos ou realidades,
vividos ou não, pela autora. Poeta que
ora se esconde, ora se mostra; mas sempre de maneira sutil, plena de
subterfúgios. Vejamos:
Talvez tenham chegado
No momento certo,
Para descortinar
O que estava encoberto.
(...)
Apartados de mim,
Fui ao fim!
(Perdição)
Ou:
Nada me faria mais feliz / Do que romper
laços, / Mesmo em sombras de traças, / Atracadas em cais fantasma. / (...)
/ Talvez na fé de um momento qualquer, /
Libertar-se-á. / (Nada faria), e
vários outros poemas.
Regina
Lyra, com sua característica de (re)novar
o seu próprio verso, sem deixá-lo cristalizar; com sua solução de movimento, atira-se nos poemas, sem medo
de errar. A poeta — consciente e
humildemente — prefere agir,
fazer, ousar; ao invés de ver seu trabalho e a si mesma estagnados. Leiamos o
ótimo poema Medo:
Não ter medo.
Exorcizar os temores.
Agradecer a ajuda
Em tudo
— Até no erro.
Outra
especificidade formal que podemos encontrar nos poemas de Regina Lyra é a
distribuição espacial dos versos nas páginas.
Em particular, o recurso da verticalização das palavras, existente na
grande maioria dos poemas inseridos no livro. Um recurso estilístico que, nem
sempre, cumpre com a aparente intenção de enfatizar a força da palavra dentro
do poema. Trata-se de uma técnica anteriormente muito empregada pelos poetas
das Gerações 60/70, por influência dos concretistas. Utilizada à exaustão, pode
correr o risco de cair no vazio, numa espécie de recurso do estilo pelo estilo. A leitura minuciosa desses poemas e da
função da verticalidade na poesia da autora permite ao leitor extrair elementos
para entender (para efeito de juízo crítico) se essa preocupação está enraizada
na intenção da poeta ou se pode qualificar-se, somente, de vício literário ou
de moda poética. Porém, se analisarmos com isenção a característica da função
da verticalidade na poesia de Regina Lyra, teremos a certeza de que ela exprime
a sua dimensão interior. Assim, nada se encontra ali por acaso, nada é feito de
maneira gratuita. Desse modo, a insistência da autora na utilização das
palavras em vertical tem a exata função de enfatizar uma ideia, que dá lógica e
suporte a um pensamento poético.
Para
finalizar, um pequeno exemplo, não à toa intitulado Poemas. O texto salienta o
que me parece ser o atual estágio de seu trabalho: uma pérola lapidada.
Em cada bom poema que leio,
Encontro pérolas aninhadas.
Desconfio que a poesia
Seja uma pérola lapidada.
Acreditem:
Regina Lyra, em seu livro Vão da Palavra,
lê o mundo e o devolve a nós, seus leitores atentos, refeito em beleza.
*Tanussi Cardoso
Poeta, jornalista, crítico literário.
Presidente do Sindicato dos Escritores do Estado do Rio
de Janeiro.
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