Hoje
me dedicarei a três seletas, duas de prosa e uma de verso. Ou uma de relatos,
outra mista e mais uma só de acordes. Ou não será assim? Todas de feição
modesta: poucas páginas. Quanto aos autores, dois são cearenses e meus amigos;
o outro é alagoano e não conheço. As obras são Veredas da caminhada (São Paulo: RG Editores, 2011), de Caio
Porfírio Carneiro; Aliterar versos 20/60
+ alguns instantâneos (Fortaleza: Expressão Gráfica, 2013), de Luciano
Bonfim; e Laringes de grafite (Porto
Alegre: Vidráguas, 2012), de Adriano Nunes.
Caio é meu mestre e de
muita gente, não só por ter estreado em 1961 (nesse tempo eu ainda balbuciava
versos antigos dos livros escolares), com o conjunto de contos Trapiá (clássico da moderna literatura
brasileira), mas, sobretudo, por estar entre os melhores contistas nacionais
surgidos no início da segunda metade do século XX. Luciano é jovem (tem idade
de ser meu discípulo, se não o fosse de Moreira Campos e Caio Porfírio
Carneiro, para citar dois cearenses dos mais ilustres) e estreou em 2002, com Dançando com sapatos que incomodam.
Adriano é mais novato ainda: Laringes de
grafite é seu primeiro breviário e não me foi enviado por ele e sim por
Carmen Sílvia Presotto, coordenadora editorial da Vidráguas e poetisa. (Não
localizei na brochura ou na Internet outras informações).
Direi o mínimo de cada coletânea,
não por preguiça ou falta de leitura atenta. É que sou contumaz crítico de Caio
(longo estudo em Contistas do Ceará;
resenha de O sal da terra, em Gregotins de desaprendiz; crônica em Como me tornei imortal; e outros textos
menores) e não quero me repetir. Não fui tão longe com Luciano, contudo já lhe
dediquei dois ou três artigos e crônicas. A explicação é óbvia: o autor de Aliterar versos é ainda principiante.
Talvez me empenhe mais ao poeta das Alagoas, mesmo sem o conhecer e apesar de
também ser noviço no mundo das letras.
Confessa Caio, nas abas
de Veredas da caminhada, preferência
pela short story. Em razão disso,
comemorou os cinquenta anos de sua estreia em livro, com a publicação de mais
um volume de histórias miniaturais. Da seleção constam 29 peças, compostas
entre 2007 e 2011. Algumas muito reduzidas, a exemplo de “Auxílio” (apenas nove
linhas); outras mais alongadas, tais quais as duas últimas (“Um dia na vida de
Nestor”, com cinco páginas, e “A culpa”, com seis). Quase todas conheci antes, em
separado. Sou leitor de Caio mesmo.
Luciano, em Aliterar versos 20/60 + alguns instantâneos,
é mais econômico ainda. Suas minificções são tão minúsculas que ele as chama de
“Instantâneos”. São apenas 17, em objeto do tamanho de bolsinho de criança. Não
podem, no entanto, ser lidas por pessoas com menos de 18 anos. O impresso é
dividido em duas partes: a primeira só de poeminhas de três linhas cada.
Parecem haicais.
Com Laringes de grafite, Adriano andou também a praticar “mixagens”.
Entretanto, preferiu não arriscar tanto quanto Luciano e ficou na ode, sem se
aproximar da prosa. Não tanto na frase musical, pois também fez experiências
visuais, a lembrar o concretismo. É só olhar para “Quéops” (dedicado a Augusto
de Campos), “Oração” (a José Paulo Paes), “ao r do po et a” (a Haroldo de
Campos), “e c t”, “De repente” (também a Augusto) e “Diáspora” (idem).
Consoante praxe da
estória curta, Caio, em Veredas da
caminhada, apresenta personagens
planas e sem nome explícito. Vejamos a primeira (“Pontos na paisagem”). Um ser
fictício se vai mostrando, aos poucos, nas breves ações. Primeiro se sabe tratar-se
de homem: “Respirando o ar quente, suado, extenuado”. Quem será? Esse fulano caminha por estirão empoeirado,
“sacola pendurada aos dedos”; encontra casebre; “arriou-se no banco tosco”.
Mais algumas descrições (árvore desgalhada, pote, caneca, tamboretes, “uma rede
entrouxada”). Em não havendo outro ente, o protagonista se põe a falar só ou
para si: “De quem será isto?”; “Depois da desgraça feita qualquer lugar serve”.
Tudo com muita economia verbal. A seguir, na “segunda parte” da história, o sujeito
adormece e logo acorda. Sem susto (dele) e sem explicação do narrador, põe-se a
dialogar com mulher, também com nome oculto: “Ele lhe deu espaço na rede e ela,
pequena trouxa no chão e o vestido uma nuvem de pó, acomodou-se ao seu lado”.
Caio é mestre na
construção de criaturas imaginárias, de enredos enigmáticos (diluídos,
impalpáveis quase), em frases diminutas (e também longas), sem balangandãs
(explicações) ou arremedos forçados.
Luciano Bonfim, em Aliterar versos 20/60 + alguns instantâneos,
é mais brincalhão ou mais moleque (a idade é propícia a isso) do que o velho
(não, porém, sisudo) Caio. Nos poeminhas é isso (brincar com palavras e sons)
bem visível ou audível: “Passear pela praia / Rever ruas, relvas / Reunir
reinos: reinar”. Aliterações. Em todos os cânticos o mesmo procedimento:
“Andorinha: abnegada ave, / Corta céu / certeira / Verão vem vindo”. (Veja-se a
barra entre “céu” e “certeira”, totalmente diversa dos sinais por mim utilizados
para separar os fios poéticos). As prosas (podem ser chamadas de mininarrativas)
mostram idêntico espírito “brincalhão”. Esse humor negro, todavia, não passa de disfarce de tragédia. Vê-se isso
em “Ressaca”: “Nossa! Você me lembra demais o seu pai... Por isso te odeio
tanto – disse a mãe à filha, antes de sufocá-la com o ursinho de pelúcia”.
Algumas vezes, não chega a inventar nenhuma história. É o caso de “Fenômenos da
natureza humana”, constituída de frase sumária: “Para um espaço frio, dois
corpos quentes”.
Adriano Nunes, apesar de
jovem e “desconhecido” (por mim), tem recebido loas de grandes nomes da poesia
brasileira: Ledo Ivo (nas abas), Antonio Cícero (no prefácio), José Mariano
Filho (abas) e Antonio Carlos Secchin (quarta capa). Para este, “seus textos
são réplicas, não pastiches, aos poetas homenageados”. Em sonetos e poemas de
formas diversas, o poeta pratica poesia em sentido amplo: vai da brincadeira
verbal (e com o acorde de circunstância) à intertextualidade, à metalinguagem
e, por extensão, à poesia filosófica. Em “Dez para dez”, soneto quase regular
(na modalidade de rima), brinca com a bebida: (...) “Talvez, / Baco apareça
aqui, / No bar. Sem timidez, / Prove do vinho” (...).
Na primeira parte deste
comentário, reportei-me às experiências verbo-visuais do poeta. É hora, pois,
de me dedicar ao seu modus operandi de
poeta “como outro qualquer”. Além de sonetos, pratica, com boa caligrafia, cantos
formados por quartetos, quintetos, sextetos, estrofes de doze versículos ou
irregulares, sem medo de errar ou sem pejo de repetir o mil vezes repetido.
Além disso, (estamos vendo apenas os aspectos formais) Adriano Nunes mergulha
também nos enigmas da poesia e da vida. Vejamos “Do que quer ser concebido”.
Basta o final: “pronto. / admito: / palavras são para isso, / repito, para
cantar / o infinito / do que quer ser concebido”. Parece (como as aparências enganam!)
apenas composição prosaica, não é? Fernando Pessoa (em todos os seus nomes)
também é assim.
Bem, basta. Não sou
crítico literário, sou apenas leitor. E olhe lá. Talvez não passe de aprendiz
de escritor. Vamos, pois aos três livrinhos (no tamanho) de Caio, Luciano e
Adriano. Aos seus enigmas.
Fortaleza, 8 de junho de
2013.
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