Debruçado na pia da cozinha, chupando
manga ubá, ouvi o ronco do motor vindo do alto. Larguei tudo e corri pro
quintal. No rumo do abacateiro ainda pude ver as letras do avião, apesar da
pouca luz do fim de tarde. Achei que ia bater, acabou ganhando altura. Não
entendi o que estava acontecendo. Corri pra praça onde cada um dava um palpite.
—É o noivo da Jandira dando rasante pra
fazer bonito!
—O piloto perdeu a rota!
—É pane, olha ele cambaleando!
O Said, advogado formado de novo,
querendo mostrar serviço, foi até o jardim e mandou os motoristas de praça
subirem pro campo e clarearem a pista pro avião pousar.
Confusão igual na cidade, só com
enchente, quando não tinha aula, bom pra bater perna. Quem estava gostando
também era o prefeito. Avião nenhum tinha descido na cidade desde a inauguração
do campo que só servia pra soltar papagaio e encontro de casal.
O Precioso, sempre trazendo uma garrafa
de pinga e uma bisnaguinha de salame pros fregueses mais chegados, foi o
primeiro a subir com o carro de praça.
Dentro de pouco tempo, levantando poeira,
uma fileira comprida ganhava a estrada. Motocicleta, lambreta e bicicleta. Até
o Coelho, se não é o soldado, subia com a Baiana puxando a carroça.
Eu não queria ficar de fora do que
acontecia.
Quando abro a porta pra ganhar a rua —
lanterna na mão, presente do padrinho — meu pai planta na frente e “aonde pensa
que vai?”
Ficar em casa amuado, olhando aquela
montoeira de gente subindo, sem nunca ter visto um avião de perto, e pior, no
dia seguinte na aula, ter de escutar as histórias dos meninos, e o bobo aqui
mudo, parado, invejando todo mundo sem ter nada pra contar? O pai podia me
comer na correia que eu ia. Por causa de marca na perna nunca deixei de fazer o
que me dava na cabeça.
Volto, finjo que vou pro quarto, fujo pela
cozinha, pulo o muro, invado o quintal do vizinho, assanho as galinhas e ganho
a rua.
O avião não parava de sobrevoar a cidade.
Sumia e apontava na Ponte da Aldeia, rumava pro outro lado, pegava altura
depois do Matadouro e vinha de novo. Voltava alto, a luzinha quase sumindo na
Taquara Preta. Até na igreja era difícil segurar os fiéis na novena pra São
Lourenço. Ninguém queria tirar o pé do adro sem ver aquela barulheira. “Não
chega os filhos do juiz que perderam a vida num desses, faz pouco vindo do
Rio?” — dizia ao padre, Licurgo, o sacristão.
A cidade toda estava lá em cima. O
sargento do destacamento, já rouco, dava ordens com o auxílio do também rouco
alto-falante do Zé Boi, que só servia para noticiar funeral.
Por fim, depois de muita poeira e
confusão, os soldados conseguiram colocar os carros lado a lado, formando um
corredor.
Não demorou e o barulho do motor
aumentou. A luzinha apareceu no rumo do poente. Tão logo o último carro emparelhou
com o Studbaker do grã-fino do cartório, o avião veio baixando, até que as
rodas quicaram, assustando as pessoas. Depois parou de vez, perto da baratinha
do coletor.
Foi uma buzineira só. Todo muito correu
pra ver de perto o avião da Aero Sita.
De dentro apareceu um sujeito de bigode
fino, com uma jaqueta de couro e óculos sobre o gorro de aviador.
— A cara do Marlon Brando — suspirou a moça.
O prefeito foi o primeiro a chegar perto dele
pra convidar pra jantar.
Aflita, mamãe me esperava na sala. Falou
que eu podia entrar que papai já estava dormindo. Curiosa do jeito que era, nem
ralhou comigo. Disse que estava morrendo de fome e perguntei o que que tinha
pra janta.
—Nada de comer sem lavar os pés. Vai lá
enquanto eu quento.
Falava
sem parar e engolia o escaldado com ovo. Contei desde o começo quando o soldado
me barrou na subida, e que tive que dar uma volta grande pra ver o avião de
perto, pegar nele e alisar a lataria do motor, quente ainda, porque a coisa que
eu mais gostava era ir pro mato, catar pipa, ir talhando com o canivete até
aparecer um Douglas ou um Constelation, cada avião que só faltava roncar.
Mamãe
ficava impaciente querendo ouvir o resto da história.
—Os carros
já estavam tudo um do lado do outro. Não tinha nenhum na cidade. Tão logo cheguei
o avião apontou. Com muito cuidado fui engatinhando pro soldado não me ver.
Fiquei no meio dum Buick
e dum Packard. Quando vi que estava baixo, quase encostando no chão, enfiei a
mão no bolso, puxei a lanterna, acendi e joguei o facho de luz na pista. A
minha mão tremia.
Mamãe ouviu em silêncio, os olhos fixos
em mim. Tenho certeza que teve orgulho da minha aventura.
Fui
pro quarto e fiquei pensando no que aconteceu. Levantei, peguei a lanterna na
sala e voltei pra cama. Virei pro canto e pus ela perto da parede. Apertei o
botão de acender e nada do facho forte – só uma luz fraca já apagando. Eu
fechava e abria o olho e via a brasinha sumindo. Ficamos assim os dois: ela
fraquejando, raleando, eu piscando, insistindo em prolongar aquela noite.
*Anchieta
Rocha nasceu em Pitangui, mora em Viçosa, também em Minas Gerais. É formado em
Letras pela PUC-BH. Tem publicações em antologias e sites literários. O conto Campo de Avião faz parte de uma
coletânea ainda inédita. Em breve,
seu romance Dias de Vinho e de Chumbo será
lançado pela Editora Jaguatirica Digital.
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