Ganhei, entre março e abril de 2013, mais três
livros de prosa ficcional. Fiz anotações às margens e agora tentarei rabiscar
umas impressões de leitura, embora não tenha compromisso com ninguém, sejam autores
ou editores de jornal. Só o faço porque uma das missões a mim dadas se resume a
divulgar a nossa literatura contemporânea.
Tenho lido apenas mimos e presentes, quase todos
doados por trovadores e prosadores. Vez por outra, ganho um Cervantes, um
Juvenal Galeno, um Borges. Nesse caso, são artes de magia. Recebo também literatos
mais novos, a exemplo de Agustina Bessa-Luís e Francisco Azuela, que meus
amigos são também universais e atemporais. Pois prendeu minha atenção, depois
de ler A lucidez dos insanos
(Brasília: Art Letras, 2013), de Assis Coelho, um volume de Agustina
Bessa-Luís. Dele ou dela, todavia, não anotarei um vocábulo sequer, porque não comento
ficcionista estrangeiro ou famoso: só analiso brasileiro de meu tempo e situado
bem longe da fama. Passei aos Contos vertiginosos
(Porto Alegre: Editora Bestiário, 2012), de Roberto Schmitt-Prym. Agarrei-me, a
seguir, ao Rotonda de gatos ilustres/Panthéon des chats illustres, do mexicano
Francisco Azuela. (Cito títulos de fora do Brasil – e não passo da citação –,
só para afirmar quanto prezo a nossa literatura, em detrimento da forasteira. Mais
uma explicação: os dois opúsculos alienígenas também foram doações de amigos,
pois há mais de vinte anos não compro esses sagrados objetos “inventados” por
Gutemberg. Isto quer dizer o seguinte: não frequento livraria nem compareço a
lançamento. Depois foi a vez de Lá nas
marinheiras e outras crônicas (Fortaleza: Imprece, 2012), de Bruno Paulino.
Vejamos, de relance, alguns aspectos de cada uma
das três coletâneas brasileiras. Comecemos pelo mais conhecido (por mim). Não o
escritor (que nunca vi), mas a seleta, pois fui dela prefaciador. Copiemos trechos
do prefácio de A lucidez dos insanos:
“Assis busca retratar as
questões de relacionamento das pessoas em aglomerados urbanos, a vida na sua
fluidez diária, contínua, pujante e também degradante e degradada. ‘Cachimbos,
cigarros e garrafas eram compartilhados sofregamente’ (...) ‘Tudo foi feito,
como convém às ações espúrias, na calada da noite. Ouviu-se uma grande explosão
às quatro da manhã’”.
“Nota-se também na prosa de Assis Coelho o uso
frequente do ponto de vista onisciente, além da quase ausência de descrições de
ambientes e de falas, quase sempre ‘mostradas’ ou ‘repassadas’ ao leitor por
via indireta: ‘Outros falavam que tinham sido mortos a tiros ao visitarem
parentes na Terra Santa. Alguns asseguravam que haviam abandonado a cidade para
viverem na quietude entre animais no campo’’’.
“A descrição/narração de atos de violência se dá
como fato passado e não como se fosse ao vivo. Não há cenas expostas de perto
ou no momento de sua ocorrência, diferente do cotidiano do jornalismo de
televisão e na ficção urbana moderna. Nenhuma nudez explícita, nenhuma cena de
sangue. Suas histórias são narradas como fatos passados, sem fotografias ou
imagens em movimento. Em razão disso, os verbos estão sempre no pretérito”.
“Assis Coelho pratica também o miniconto. Veja-se
‘O inquilino’. No mais das vezes, porém, persegue a história linear e concisa. Não
tão minúscula, a ponto de se perder de vista (incidentes capsulares semelhantes
a axiomas, ditados, aforismos ou meras frases extraídas de obras de maior
fôlego). Além disso, brinca com ele mesmo ou com o escriba sem cara, sem nome
(‘O conto perdido’). As agruras do homem letrado, sempre em busca de reconhecimento.
Mesmo em sua própria casa”.
Roberto Schmitt-Prym é, dos três, o mais próximo
de meu conhecimento, desde a criação da revista eletrônica Bestiário, da qual foi fundador e participo, a partir dos primeiros
vagidos. Tem editado meus catataus e temos nos encontrado. Entretanto, não
quero me referir a ele, e sim ao seu primeiro conjunto de narrativas, o fino Contos vertiginosos. São relatos condensados:
vão do mínimo (uma linha) até uma página inteira (“Cortejo”). Na observação de
Luiz Antonio de Assis Brasil, na primeira aba, o artesão gaúcho revela “uma
visão realista de nosso quotidiano”, com personagens (sem nome) em constante
deambular “por um universo em que a esperança é coisa rara”. Roberto
Schmitt-Prym aprendeu, pelo menos, um dos fundamentos da arte de compor episódios
abreviados (foi aluno do próprio Assis Brasil e de Charles Kiefer): não deu
nomes às suas criaturas.
Outra lição aprendida direitinho: nada de
narrações soltas e dispersas. A microficção exige rédea curta, estrada estreita
e cavalgada (cavalo e cavaleiro) breve. Para ser fiel à metáfora, conduzo o
leitor ao primeiro drama (“Cavalgada”): obra-prima. Além do mais, nada de
frases longas, porque a composição mal se inicia (“A velha casa é cheia de
ruídos”) e logo chega ao fim (“Cansado não ouve as vozes que o chamam”). No
meio, acanhada fantasia (“Vozes”). Não é comum em estória lacônica o uso do
diálogo direto. Contudo, Roberto sabe usá-lo. Leia-se “Tempestade”. É
maravilhoso “Cachorros no jardim”: o medo, o costume, o cotidiano, a estranheza,
logo tornada trivialidade. Lembremos aquele famoso exemplo de Augusto
Monterroso. Ora, direis, trata-se da síntese da nata. Sim, é verdade. No
entanto, além do creme, vê-se nas duas peças é o ser humano apto a se acostumar
com facilidade ao estranho.
Bruno Paulino eu não conhecia nem de nome. Agora
conheço um pouquinho. Não sei se publicou mais tomos ou se escreve short stories, poemas, romances. Este é
de crônicas. E o título ele o colheu da primeira. E onde ficam as Marinheiras? Talvez
em Quixeramobim, sertão do Ceará, terra de antigos Maciéis e Araújos e de onde
partiu aquele velho Antonio Conselheiro para incendiar o Brasil. Virá daquele
tempo ou daquelas paragens o título do escrito e do impresso? Quiçá de uma
canção de Fausto Nilo, também nascido naquela cidade.
Não sei se são feitas de memórias as páginas de
Bruno Paulino. Se não são, serão de observações. E isso dá no mesmo, pois não
se pode falar do que se vê ou se verá, porém do visto. E o que viu o cronista?
Viu-se “péssimo atirador de baladeira”, para deixar “em paz os passarinhos” e,
assim, se deixar em paz. Menino desajeitado, incapaz de matar o menor dos seres
vivos. De igual modo agiram o compositor Fausto Nilo e todos os poetas de todos
os tempos e todas as latitudes. Porque matar, seja passarinho, raposa ou gente
é sina de maldade. Embora seu pai não fizesse isso (matar passarinho) por
maldade. Pois Bruno sai em passeio pelo passado, por gentes e bichos, terras e
águas (mesmo as poucas do sertão). Por sua Quixeramobim (“lugar quente, um
verdadeiro miolo de vulcão”). Revisita seus pais, Patativa do Assaré, pessoas
de sua cidade natal, o poeta Quintino Cunha e diversos viventes.
Fico-me por aqui, pois outros volumes me esperam
deitados nas prateleiras. E ai de mim se não os ler, um a um, e se não os mencionar
em meu blog. Pois de lá fogem para o mundo, feito passarinhos, para dor ou
gáudio de seus criadores.
Fortaleza, 27 de maio de 2013.
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