I
Que a
literatura russa influenciou boa parte da literatura produzida no Brasil,
especialmente no final do século XIX e na primeira metade do século XX, nenhum
crítico de bom senso pode colocar em dúvida. Até que ponto chegou essa
influência e como seu deu, pois, na maioria, por desconhecimento do idioma
russo, os autores tiveram acesso apenas a traduções de segunda mão do francês,
é que nunca ninguém havia estabelecido.
Essa
questão, porém, já está devidamente esclarecida e aprofundada, depois da
pesquisa de proporções ciclópicas empreendida pelo professor Bruno Barretto
Gomide em sua tese de doutoramento apresentada ao Instituto de Estudos da
Linguagem da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), em junho de 2004, que
saiu em livro em 2011 pela Editora da Universidade de São Paulo (Edusp): Da estepe à caatinga: o romance russo no
Brasil (1887-1936), Prêmio Jabuti 2012, da Câmara Brasileira do Livro, na
categoria Teoria e Crítica Literária.
As
fontes deste livro foram extraídas de arquivos particulares de escritores e de
uma extensa pesquisa que o estudioso fez em jornais, revistas e livros
publicados entre 1887 e 1936, valendo-se também de consulta não só em arquivos
públicos e de universidades em Campinas, São Paulo e Rio de Janeiro como nos
Estados Unidos, especialmente nas bibliotecas das universidades de Illinois,
Indiana, Stanford e Califórnia.
Neste
livro, a recepção da literatura russa no Brasil é estudada a partir de dois
eixos: pesquisa documental da recepção crítica do romance russo e estudo da
vasta bibliografia comparatista que lida com outros casos de recepção da
literatura russa no Ocidente. Tudo isso acompanhado pelas discussões
específicas fornecidas pela crítica literária e pela historiografia da cultura
brasileira, como observa o autor na introdução.
Os
primeiros textos que utilizavam os romancistas russos como contraponto a
questões literárias candentes no Brasil datam da segunda metade da década de
1880. Já o final da década de 1930 marca um momento em que tais discussões
perdem sua força e deixam de ser relevantes para a crítica. O trabalho conta
ainda com um anexo que reproduz algumas fontes significativas, privilegiando as
de mais difícil acesso.
II
É
observar que a chegada do romance russo ao Brasil foi uma consequência marginal
de um processo internacional iniciado na França, que o tornou uma sensação
europeia em meados da década de 1880. Foi quando surgiram as traduções em
escala industrial e livros de crítica que assinalavam a recepção desses
romances em língua francesa.
Gomide aponta o ensaio O Romance Russo, de Eugène-Melchior de
Vogüé (1848-1910), publicado em 1886, como o elemento basilar dessa recepção,
pois era a ele que recorria a maior parte dos ensaístas, inclusive no Brasil.
Entre os romancistas brasileiros, Lima Barreto (1881-1922) foi o que mais se
deixou influenciar pelas ideias que os romances russos traziam implícitas,
especialmente a partir do prefácio que Vogüé escreveu para Recordações da Casa dos Mortos, de Dostoiévski (1821-1881).
O
pesquisador observa que já havia conhecimento da literatura russa no Brasil
antes mesmo da década de 1880, mas esses contatos se davam em escala diminuta.
A partir daquela data, o seu “surgimento súbito” no País, em função do que
ocorria na França, passou a atiçar a criação de uma literatura genuinamente
nacional, como observaram ao tempo José Carlos Jr. (?-?), um crítico paraibano
hoje quase esquecido e justamente “ressuscitado” por Gomide, e Clóvis
Bevilacqua (1859-1944). Mas, como constata Gomide, essa interpretação não foi
unânime. Para Tobias Barreto (1839-1889), por exemplo, os romancistas russos
eram a negação de tudo o que a cultura francesa representava.
Para
Silvio Romero (1851-1914), os russos seriam também o melhor exemplo antípoda de
Machado de Assis (1839-1908). Se o escritor fluminense construía delicados
estados psicológicos de suas personagens à maneira do francês Paul Charles
Joseph Bourget (1852-1935), Romero fazia o contraste com a estética radical do
choque, exemplificada por Edgar Allan Poe (1809-1849) e Dostoiévski, observa
Gomide. E acrescenta: para Romero, o autor fluminense ficava “bem abaixo de
Dostoiévski, Poe e até de Hoffmann (1766-1822), quando este envereda, como o
próprio Machado diria, pelo distrito da patologia literária”.
Portanto,
o caráter inovador da prosa russa foi imediatamente detectado pelos críticos
brasileiros, que passaram a utilizá-lo largamente como termo de comparação em
suas críticas e recensões. E até a apresentá-lo como um modelo de emancipação para
a literatura brasileira.
III
Na
primeira parte de seu livro, Gomide trata da divulgação dos romancistas russos
a partir da metade dos anos 1880, especialmente de 1883 a 1886. E apresenta
exemplos do aumento vertiginoso do número de traduções e do entusiasmo nos
meios intelectuais pelo novo fenômeno literário. Mostra ainda que, quando a
revolução de 1917 assustou o mundo, já havia no Brasil uma tradição de três
décadas de discussão do romance russo em periódicos e livros de crítica.
Portanto,
associar autores como Dostoiévski, Turgueniev (1818-1883), Leon Tolstói
(1828-1910) e Alexandr Pushkin (1799-1837) ao bolchevismo só podia partir de
mentes obnubiladas, o que não é de admirar, pois, à época da última ditadura
militar (1964-1985), o livro Juan Rulfo:
Autobiografia Armada (Buenos Aires, Corregidor, 1973), de Reina Roffé, teve
a sua importação barrada, por volta de 1975, porque o censor fez uma
interpretação beligerante da palavra “armada”, quando o título queria dizer
apenas que a autobiografia havia sido “armada” com declarações do escritor
retiradas de entrevistas publicadas em épocas diversas. Santa ignorância...
Na
segunda parte de seu trabalho, Gomide estuda as décadas de 1920 e 1930, quando
era flagrante o impacto da revolução bolchevique. E mostra claramente que, ao
contrário do que se supõe, a literatura russa nunca foi uma espécie de
patrimônio da esquerda, pois intelectuais católicos, como Alceu de Amoroso Lima
(1893-1983), Tasso da Silveira (1895-1968) e Jackson Figueiredo (1891-1928), já
discutiam sua influência na literatura mundial, especialmente a partir de
Dostoiévski, Máximo Górki (1868-1936) e Leon Tolstói.
A
segunda parte do livro apresenta, além de um panorama do mercado editorial da
década de 1930, textos que desconfiam abertamente das interpretações geradas no
fim do século e tentam cercar os romancistas russos por outros ângulos. E
contestam a ideia de que o niilismo de Dostoievski e de outros escritores
russos teria preparado terreno para o avanço do comunismo e a vitória dos
bolcheviques em 1917, apenas porque a literatura russa sempre esteve associada
a questões sociais. Na conclusão, Gomide defende que é anacrônico reler os
primeiros momentos da recepção da literatura russa no Brasil de acordo com os
resultados posteriores à revolução de 1917.
Como
o livro vai até 1936, fora da análise de Gomide fica o recente renascimento do
interesse do leitor brasileiro pelo romance russo que, a rigor, deu-se depois
do lançamento,
em 2001, da primeira tradução de Crime e
Castigo, de Dostoiévski, feita diretamente do russo por Paulo Bezerra, pela
Editora 34, de São Paulo. Em seguida, saíram vários livros traduzidos diretamente
do russo por Paulo Bezerra, Boris Schnaiderman, Fátima Bianchi, Lucas Simone e
outros. Em 2011, saiu também Gente Pobre,
de Dostoiévski, com tradução de Luíz Avelima, pela editora Letra Selvagem, de
Taubaté-SP.
IV
Bruno
Gomide (1972) é doutor em Letras pela Unicamp, com estágio de doutorado na
Universidade da Califórnia, em Berkeley. Realizou cursos nas universidades de
Illinois, Indiana, Cambridge e Linguística de Moscou. Foi pesquisador-visitante
no Instituto Gorki de Literatura Mundial, em Moscou, com apoio da Fundação de
Amparo à Pesquisa no Estado de São Paulo (Fapesp). É o organizador do grupo de
trabalho de Literatura Russa da Associação Brasileira de Literatura Comparada
(Abralic).
Organizou
a Nova Antologia do Conto Russo (1792-1998),
lançada recentemente pela Editora 34, que reúne nomes conhecidos no Brasil como
Pushkin, Gógol, Dostoiévski, Tchekhov, Tolstói, Pasternak, Bábel e Nabókov e
outros menos conhecidos, como Odóievski, Grin, Chalámov, Kharms, Platónov e
Sorókin, num total de 40. Tem publicado artigos em periódicos internacionais,
como Tolstoy Studies Journal e Vopróssi Literaturi, e participado dos
principais congressos de eslavística.
_______________________________
DA ESTEPE À CAATINGA:
O ROMANCE RUSSO NO BRASIL (1887-1936),
de Bruno Barretto Gomide. 1ª ed. São Paulo: Editora da Universidade de São
Paulo (Edusp), 768 págs., 2011, R$ 120,00.
E-mail: edusp@usp.br
____________________________________
(*) Adelto Gonçalves
é doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo e autor de Gonzaga,
um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona
Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil,
2002) e Bocage – o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003).
E-mail: marilizadelto@uol.com.br
/////