Uma resposta, inquieta, que provavelmente nem chegará
até o nosso futuro
“Poeta, esporadicamente leio os
seus livros”, registra Ferreira Gullar – provavelmente hoje o poeta vivo cuja
reputação efetivamente transcende os limites da Poesia – as palavras de um
mendigo que a ele se dirigiu. Ao contrário da figura pública, que é Gullar, há
pouco tempo compartilhava-se a forte impressão de que poetas seriam apenas uma
invenção verbal, reduzidos exclusivamente à dimensão do livro. Mas até onde o
poeta pode reinar sem reino? Até a inanição absoluta? Outrora um poeta como
Victor Hugo podia insuflar com versos o espírito de sua época, o século XIX,
tão marcado por convulsões. Aqui entre nós, ao início do século XX, Olavo Bilac
pôde gabar-se de dar ao poeta o status
de profissão. Hoje há quem sustente que o poeta está inelutavelmente destinado
a perecer e nem mesmo merece ser salvo, pois tem extrema dificuldade de dar uma
finalidade à sua arte.
Talvez não seja tão evidente
assim a inexistência de salvação para o poeta nesta sociedade em que as
consciências são domesticadas pelo mercado. A morte da Poesia já foi anunciada
tantas vezes que, a menos que as leis da gravidade tenham de fato sido suprimidas,
é bastante compreensível o desaparecimento dos poetas na trajetória da espécie
humana.
Dizer que a Poesia vem cada vez
mais definhando a ponto de estar fadada ao desaparecimento, pois não tem lugar
hoje, em nossa sociedade, etc. etc., seria o mesmo que afirmar que a humanidade
prescinde da experiência artística. Em grande medida é uma burla dizer que a
Poesia resiste solitária tanto no poeta publicado quanto naquele inédito que,
invisível ao mercado, faz uso da tecnologia que o mercado proporciona, publicando
seus poemas em blogues e revistas literárias virtuais. Parafraseando o autor de
Poema sujo, a poesia existe vária e
múltipla porque a vida não basta.
É muito frequente ouvir que a
Poesia é uma expressão literária restrita e que está sempre fora do alcance do
leitor – fenômeno diferente daquele que ocorre com a prosa (ficcional ou não),
em que determinados títulos alcançam hoje tiragens elevadas, da ordem de
milhares de exemplares. Está certo: a Poesia rende acanhadas edições. Poucas
chegam a quinhentos exemplares. São muito comuns hoje as edições de cem ou
cento e cinquenta exemplares, custeadas pelo próprio autor. Indigno, como já
ouvi de outro bom poeta. E tão mais evidente se torna a selvageria do fato
quanto mais se observam as milhões de “protuberâncias” que se chamam livros
circulando por aí, completou ele.
Mas nada do que se reputa à
História escapa à Poesia. Nesta, hoje se veem os resultados de tantos processos
históricos, tantas tradições em conjunção, que a pluralidade de poéticas,
linguagens e formas comprova que a Poesia existe e continuará existindo. A
Poesia resiste, reinventando-se na carne viva da música popular brasileira.
Polêmicas à parte, não consigo pôr simplesmente porta afora os compositores da
MPB, aedos modernos, muitos deles poetas vigorosos, não apenas legítimos
herdeiros dos trovadores medievais, mas também daquela tradição que se
consolidou na lírica ocidental e que terminou por priorizar a dimensão
lógico-representativa. “Onde queres o sim e o não, talvez // E onde vês, eu não
vislumbro razão”, como diria Caetano. Não, não sou Platão para excluir poetas,
pois o que entendemos por real é ponto de encontro de tantas realidades que
aquelas consciências dotadas de sensores auditivos e mentais mais sensíveis e
afinados com a Poesia tendem a incluir nos paradigmas do poético manifestações
linguísticas de alto valor expressivo. A despeito da censura dos censores de
plantão, brota em canções a fina flor da Poesia, como nos dão provas Paulinho
Moska e Jorge Mautner, Rodrigo Garcia Lopes e Vinicius de Moraes, Zeca Baleiro
e Paulo Leminski, arriscando-me a citar apenas uns poucos exemplos que nesse
momento me (s)ocorrem.
A Poesia resiste presente em
gêneros textuais os mais distintos, não necessariamente literários. Na
propaganda, ao fazer uso de determinados procedimentos e recursos linguísticos,
a linguagem poética é instrumentalizada pelo publicitário. A prosa ficcional
aproxima-se tanto da Poesia que a ousadia de alguns ficcionistas não é apenas
recorrer à linguagem poética, é indagar pela linguagem nos limites do poder
dizer e admitir entre o vivo e o vivido, a percepção da ausência para além de
si, as palavras e o silêncio, que o que vemos é a Poesia resistência, sendo
reinventada, reinterpretada e reincorporada na multipolaridade dos discursos
que se constroem mais ou menos poéticos.
Nesse sentido, dizer que a
Poesia resiste enquanto fenômeno estrita e exclusivamente literário talvez seja
negar que a palavra poética tem uma existência no mundo e que encarna demandas
próprias e específicas não apenas da Poesia. Por outro lado, o leitor pode
objetar que este raciocínio conduz à ideia de que a Poesia não é um domínio
específico, sobretudo se esse leitor imbuir-se da condição de autoridade
legisladora no assunto e detentor do saber institucional sobre o objeto que
domina. Sociedade acostumada a superdimensionar o conhecimento científico e a
especialização, não é de espantar que seja habitual o desprezo da universidade
pela atividade crítica exercida por escritores e poetas. O que é espantoso
mesmo é a dificuldade de encontrar leitores de poesia contemporânea entre
doutores, especialistas em literatura, no meio acadêmico.
Em texto recentemente publicado1,
o professor e poeta Paulo Franchetti manifesta seu “desconcerto” diante do
constrangimento de colegas – igualmente doutores em literatura, intelectuais
com larga experiência de estudo e ensino – por não compreenderem a poesia
contemporânea. Segundo Franchetti, enquanto a chave “mimética” dá em geral bem
conta da compreensão da prosa e do teatro, a tonalidade “afetivo-expressional”
da poesia costuma repelir o viés representativo, impondo ao especialista a
necessidade de conhecer os parâmetros específicos do gênero lírico, notadamente
os vetores da evolução da lírica, o que resultaria enfim na exigência
insofismável de identificar no presente as marcas das diversas tradições à
disposição e vivificadas pelo texto literário.
Façamos justiça. Em época como
a nossa, que reivindica a Liberdade, o campo eletromagnético da Poesia parece
repelir quaisquer teorias e imposições, o que terminaria por resultar na
equivalência “democrática” de todas as poéticas, formas e tendências poemáticas
existentes se o direito ao exercício da Poesia neste emaranhado de agentes
líricos cordatos fosse precedido pelo direito à diferença. Sim, a Liberdade que
postula a pluralidade de vozes – vastidão e validade de todas as poéticas – é
uma dessas boutades que não resistem
à prova da realidade. Pois bem, a Poesia existe per se ou enquanto relacionada a um objeto?
De um lado, a Poesia acolhendo
errante um processo histórico formado por tantos vetores em conflito e
orientações em conjunção: a forma mais convencionalizada das trovas
confabulando com aquela mais conforme as raízes do lirismo mais autenticamente
luso-brasileiro, junto à poesia participante na proporção inversa da
experiência surrealista, perplexa travessia em que não se costumam esbarrar
formalistas e repentistas, os “concretos” trafegando na mídia interativa e
alternativa, haicaiistas e os “autênticos” líricos no fogo e fog do momento. De outro, o pesquisador,
desnutrido das proteínas animais e carboidratos das teorias, temendo os
desafios impostos pela leitura da poesia contemporânea.
Sim, há mais: não deveríamos
nos esquecer de culpabilizar a insuficiência das políticas públicas na área
educacional, pois a educação é cúmplice da indigência do pesquisador, e assim
talvez fôssemos levados a cair na perpétua lamentação dos feixes neuronais
atrofiados e chegar à matriz de todo o problema: a corrupção... Mas não nos desviemos
tanto! Por quanto tempo mais deveremos vergar o nojo pela morte da crítica
universitária? Nos grandes veículos de comunicação, a crítica é coisa de
espectros à espera da escuta do silêncio final. Mas se a responsabilidade da
Escola é fator objetivo a considerar-se na identificação das causas da inópia
da crítica universitária, é também ela Educação responsável pela formação dos
leitores que, despreparados, se rendem ao Mercado com suas publicações
relacionadas a receitas de saúde e felicidade barata. (E não é preciso
esclarecer que o Mercado certamente não é um criminoso que age sozinho!) O
leitor despreparado é sempre uma entidade acomodada que finge admitir o poeta,
mas nega o poema (vide Facebook).
Mas não nos voltemos contra o
leitor: o poeta é o único termo da equação que no fundo sabe que o resultado da
leitura de Poesia é o poema e que todo esse processo é uma cadeia de forças
necessariamente associadas, admitindo-se ainda – como foi sugerido acima – a
força do elo político, tão determinante é ele quando se trata da cultura.
Talvez seja por isso que alguns poetas sentem mais profundamente que outros que
exercer a poesia é uma “loucura”: além de ingressar em uma busca obscura na
qual a experiência com a linguagem é muitas vezes não mais que circundar o oco
às voltas de si mesmo, eles percebem-se convocados ao exercício de uma prática
supostamente desnecessária às demandas do humano. Em consequência disso é que são
ora solipsistas sem cura, deixando-se escorregar em direção à audiência
solitária das sombras; ora reivindicadores da seriedade de toda a ação poética
nas guildas e corporações de auxílio mútuo, algumas vezes póstumo. Fora e
dentro destas duas posições, ainda restam estes e aqueles poetas vivos, músicos
ou não, mera ficção de mortos vivos, confraria de fantasmas que se dão as mãos,
seguindo o cortejo de vozes que, pela manhã ou à tarde, naqueles dias de
indigência íntima, nos estendem suas vozes para nos levar a nenhuma parte onde
possamos obter certa resposta por sua expressão. Um eco, inquieto, que
provavelmente não chega – nem chegará até nós no futuro: a poucos, e tantos,
metros, eis um abafado rumor que se fará nome: Poesia.
Amanhã, talvez haja mais de que
falar.
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Nota:
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