“Esse é o
Homem”, de Solha, é um poema longo, de quase uma centena de páginas. Pela
extensão e pelos temas abrangentes que aborda, sugere um épico pós-moderno. No
entanto, longe do tom solene que em geral caracterizam cometimentos do gênero,
a sátira e a paródia são as linguagens empregadas pelo autor. Aliás, seria até
apropriado aqui evocar o conceito de “carnavalização”, criado pelo russo
Bakhtin, e que inspirou um belo ensaio crítico entre nós, “The Iceman
Cometh: A Carnavalização da Tragédia”, escrito pela mestre em literatura Cecy Barbosa Campos, de Juiz de Fora-MG, a respeito do teatro de Eugene
O’Neill.
A
sugestão de recorrer ao termo “carnavalização” se dá não apenas por afirmações
como a presente na p. 56: “O Homem faz da natureza uma baderna.” Ou pela
entrada em cena, na p.28, de um autêntico e literal desfile de uma escola de
samba – desfile cujo samba-enredo aparentemente tem o Homem como tema. Na
verdade, além desses exemplos mais ostensivos, a própria estrutura do livro
como um todo assume um feitio de colagem carnavalesca, de delírio
surrealista.
O que
permite o gigantesco desfile dessas alas, claro, é a poesia. Erudito,
Solha vai colhendo nomes e eventos, reais e fictícios, tanto da arte quanto da
História e os vai colando lado a lado, fazendo com que de um se passe a outro,
com ritmo vertiginoso. Também, não raro, as imagens se
interpenetram. Em quase todas as páginas, uma profusão de nomes: de
ícones da História, das artes e dos meios de comunicação. Por sinal, a presença
da dita “cultura de massas” chama a atenção.
Nas
páginas 14 e 15, por exemplo, começa-se falando do lendário Spartacus; passa-se
ao Ulisses, de Joyce; chega-se ao Quixote que, por sua vez, evoca o Gordo e o
Magro. Logo adiante, estamos no filme Metrópolis, de onde imergimos nas
pinturas de Pompeia; daí, pulamos para as tiras de quadrinhos, que desembocam
na grandeza de Trajano. Já na página seguinte, passamos pelo imperador
Qin; voltamos ao Quixote; chegamos a Golias, grande, quando comparado com
Gandhi. Palavras vão chamando palavras, pela sonoridade ou semelhança.
Imagens evocam imagens afins, num permanente jogo de espelhos.
Porém,
não se trata absolutamente de um arranjo gratuito. Desde a capa da obra,
suas múltiplas setas, embora partam de diferentes pontos, sugerem ter uma
direção em comum. E é essa direção que confere ao escrito não apenas o
tom de paródia, mas também o épico. Ou seja, não se trata da
carnavalização apenas pela carnavalização em si. Do riso pelo riso.
O autor tem, nitidamente, um objetivo crítico e também um recado a dar para
reflexão do leitor.
Outro
aspecto, é que a despeito do surrealismo de boa parte das imagens e da profusão
de dados e informações, não se trata de uma obra hermética. Verdade que o
leitor contumaz apreciará muito mais a obra do que outro de menor bagagem.
Porém, a chave para a compreensão do livro não se acha em, digamos, “entender”
ou “decifrar” cada uma das alusões feitas pelo autor. A chave reside em
vislumbrar-lhe o propósito geral e depois usufruir do prazer de observar-lhe os
achados. Afinal, antes de tudo, trata-se de um livro de poesia. Não
vá o leitor assustar-se com a paráfrase pomposa do subtítulo, que ali se acha
muito mais pelo sabor do que pelo saber.
Porém, a
despeito de sua jocosidade, o subtítulo não é também inteiramente
gratuito. Pode-se perceber, de fato, a presença de uma crítica estética e
filosófica que inspirou a tessitura da obra.
Conforme
explica o autor, na orelha do livro, o título “Esse é o Homem” evoca o dizer de
Pôncio Pilatos (“Ecce Homo”), quando apresentou Jesus Cristo à multidão para
que lhe fosse decidida a sorte. Esse episódio geraria posteriormente inúmeras
obras literárias e artísticas. Dentre elas, o famoso livro homônimo de
Nietzsche, “Ecce Homo”.
Como se
sabe, a obra de Nietzsche foi profundamente crítica em relação à filosofia do cristianismo. Também
no livro de Solha, Jesus Cristo é um personagem constante, presente ao longo da
obra. Aliás, não apenas Jesus, mas a Bíblia, desde o Gênesis, marca a sua
presença. A visão tanto do cristianismo quanto de outras religiões é
permeada por um tom irreverente, no qual se lhes sublinham as contradições
morais e práticas. Ou seja, embora não tão violento e iconoclasta quanto
Nietzsche, Solha recolhe diversas contradições que vai encontrando pelo caminho
da passagem de Jesus. Não as apresenta em bloco, mas, aos poucos, em
pinceladas rápidas.
Porém,
Cristo não é o tema único do livro. Na verdade, aparece como um dos
momentos da História humana. Assim, o título “Esse é o Homem” remete
também a ideia de tratar (“tractatus”) do Homem enquanto objeto
poético-filosófico. E que Homem é esse que aparece na poesia de Solha?
A julgar
por esta obra, o traço distintivo do animal homem, em relação aos demais,
revela-se na sua gigantesca e diversificada realização cultural. Feito
somente possível por não ser o homem um “animal mentecapto”, conforme sucede
com os demais.
Porém, ao
mencionar as variadas realizações humanas, Solha o faz despojado de qualquer
tom enaltecedor. Muito pelo contrário, o poeta vai ironicamente
empilhando fatos e feitos, qual um colecionar de “bugigangas”, termo inclusive
que aparece em dado momento do livro.
Ao ler a maneira como se refere até mesmo a consagradas obras artísticas da humanidade, foi inevitável lembrar do título de uma obra de ficção do escritor Ary Quintella: “Qualquer Coisa é a Mesma Coisa”.
O
espírito de “carnavalização” atinge todos os fatos e todas as obras
citadas. Das grandiosas às medíocres. As aproximações e colagens
vão sendo realizadas ao longo do livro, ao sabor das necessidades
poéticas. O Homem se revela como um ser histórico sujeito a críticas.
Gôndolas de Veneza e gôndolas de supermercado se confundem. Entre
Gioconda e Popeye, diluem-se as diferenças. Tudo tem o mesmo valor ou
desvalor cultural, num mundo em que o “Multiplicai-vos e dominai toda a Terra”
chega “a suas retas finais” (p. 49).
Percebe-se,
no entanto, que essa visão de equivalência e mesmice não parte exatamente do
autor. Ele a encarna para revelar o modo de ver e apresentar os fatos num
mundo globalizado e sob a constante influência dos meios de comunicação
social. Sobretudo a tevê, da qual muito os estudiosos e críticos já
falaram a respeito de sua visão de “mosaico”. Assim, Solha materializa, na
poesia, a crítica feita amiúde por semiólogos sobre a banalização da obra de
arte pela grande mídia. Nela, a exibição de um pastel de carne é feita
com o apuro e destaque de importância que muitas vezes não foi dado a uma
grande pintura a pastel, exibida num museu. Exibição da qual o pastel de carne
foi o patrocinador.
Aqui,
chama ainda a atenção a imagem da capa, feita por Andréia Solha. Na
página de créditos, explica-se que se trata de uma parede frontal da casa do
autor. É interessante, porque temos a impressão de um ladrilho, o que
remete à ideia de mosaico. Ainda mais que o desenho nele presente evoca a atual
logomarca da Rede Globo e também o próprio Globo terrestre, o que remete às
ideias de tevê e globalização.
Em suma,
estamos diante de uma obra de grande riqueza poética, que nos convida à
reflexão e ao exercício de interpretação de seu conteúdo. Uma leitura
sobremaneira gratificante.
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Ricardo
Alfaya, poeta, contista e ensaísta, nascido e radicado no Rio de Janeiro, com
31 anos de atividade literária.
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